Não diz "sótão", diz "sobrado". Há palavras que nascem para ficarem eternamente suspensas na infância e esta é uma das minhas.
Se tivesse de ir sozinha, poderia dar-se ter medo de subir ao sobrado: as escadas íngremes e sempre tão instáveis, uma luzinha estéril que ainda hoje alumeia mal os cantos, a ideia de um "safanico" a aparecer entre o monte de batatas e subir-me pernas acima ou morder-me os dedos. Nunca aconteceu, porém. Era no sobrado que estavam os tesouros mais valiosos, colecções de posteridade e memória, não porque houvesse muita mas porque a minha avó guarda tudo. Roupas minhas, do meu irmão, da minha mãe, das minhas tias, de toda a gente, trapos coloridos, restos de lãs, brinquedos, peluches, coisas por acabar e coisas por arranjar, malotes, arcas velhas, sacos dentro de outros sacos dentro de outros sacos, e também fotografias, muitas, algumas já sem cor e outras já sem rosto, e a balança de braços e pesos que nunca enganava o meu avô, medidas de alqueire, quartas e oitavas. Subíamos ao sobrado pelos motivos mais fantásticos que podiam durar um dia inteiro mas, na maioria das vezes, poderia ser uma razão tão utilitária como ver se já lá vinha o homem da fruta ou para onde seguia a ambulância, que se via e ouvia à distância de duas aldeias vizinhas. Do sobrado não víamos o mar mas víamos o tempo para amanhã: o meu avô sentava-se àquela janela e dizia que amanhã ia chover.
Ontem resolveu-se um mistério familiar. Parece que o Floriano, o filho do Pardaluxo, contou ao meu pai que conhecia muito bem os meus avós e até se lembrava de ter ido à boda de um casamento no sobrado. Depois de umas rápidas inquirições na lista de casamentos que fazem uma vida, ontem lá se descobriu que o casamento era afinal dos meus próprios avós, que juntaram ali vinte a trinta pessoas para comemorar a coisa. Quando lhe contei da saga, riu-se muito e adicionou um par de detalhes que eu não sabia. Faz hoje anos e chama-me sempre amor.
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