Existem por aí objectos que sobrevivem ao tempo com o simples propósito de sustentar uma memória. Quando ele escreveu sobre o relógio, eu ainda não pensava em nada disto. Há pensamentos que se guardam para uma certa idade e vão-se criando sozinhos e à distância, quais animais selvagens à orla da ignorância e do frémito dos dias, para chegarem até nós só depois de crescidos e independentes, escusados de conselhos e outros apegos. Com o relógio também foi assim. Tão indiferente e esquecido antes, tão vivo e presente agora. O pensamento só então surgiu diante de mim, a exigir a sua maioridade adolescente, já todo senhor de si.
Era um Casio e, como o do Joaquim Janeiro, foi das atracções mais badaladas do seu tempo. Relógio de pulso digital, esse luxo. Os números a sucederem-se numa magia qualquer e efeitos especiais melhores do que os dos filmes porque estes eram reais e, mesmo não lhes entendendo a mecânica, a minha curiosidade poderia talvez sem demasiado esforço alcançar esse entendimento, fossem todas as limitações uma questão de preguiça e contradição dela.
Um botão e um apito e os segundos passavam a correr, a morrerem em catadupa à minha frente, cheios de pressa de descobrirem o que os homens procuram saber já há tanto tempo.
Outro botão e outro apito e nunca mais precisaríamos de consultar os calendários de parede, presente estimado a trazer do Grémio pela altura do Natal, tractores e legumes a forrarem na perfeição o vazio deixado na parede do escritório pelo contador da luz, ou cachorrinhos e gatinhos da fofura mais celestial a alegrarem-nos as refeições na parede da cozinha, sempre útil para saber das marés, manhã de lapas. E, finalmente, o botão mais maravilhoso de todos, o de dar luz. Uma luz amarela cor de lua cheia e noites de cio, embora eu só viesse a saber disso mais tarde.
Ler é também isto. Deitada na relva, numa ilha que avança à deriva dum dito sonho europeu, num dia em que o sol se lembrou que aqui também já é Verão, dei por mim a assistir ao renascimento dum objecto, como quem vem pôr as memórias no lugar para que não se percam.
Descreveu o relógio que o Joaquim Janeiro levou para a Guiné e era já o meu pai com o seu Casio no pulso, a levar-me pequena à sua frente na mota por entre as escarpas mais bonitas de se ver o mar da consolação, sítios que a minha mãe nunca poderia vir a saber, consolados todos os problemas e inquietações à vista desarmada daquele mar.
Escreveu ele do relógio mas o relógio era o do meu pai, a infância a minha.
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