Avisam-nos mal aterramos. As letras grandes, à altura dos olhos. Tentemos uma explicação.
As ruas calcetadas, os trams, Václav Havel e a revolução de veludo, os judeus e as histórias sobre o Golem. Kampa. O Grand Café Orient. Klobásy, Trdelník ou Trdlo, que me faz rir por me lembar o trolaró. A língua cheia de v e l e k. Merkel a ser Merkelova, Josefova, Marisova, Karalhova. Pivo, a cerveja, naturalmente, que, mesmo não sendo eu de cerveja, permitiu-me criar com carinho uma barriga de estimação. A X33 no U Medvídků que, graças a deus, os turistas ainda não descobriram, e o seu sabor doce, 12,5%, senhores!, forte e doce, viciante como tudo o que gosto. A minha ginja, o meu moscatel, a tua boca de repetir.
A arte a conduzir à arte como faz sentido ser. Bohumil Hrabal de Perkeo no colo, rodeado de gatos. Outro bêbado, o bêbado de Palmovka. Não sei onde desencantei este gosto por escritores bêbados, se é a escrita que os faz bêbados ou se é a bebida que os faz escritores, mas sei que há neles a verdade. Ninguém diz tanto a verdade como um bêbado. Descobrir Hrabal e ter de ir a correr saber-lhe as dores. Ler de empreitada, como há tanto não acontecia, só para que me conte que o céu não é humano e que me segrede que somos que nem azeitonas, é quando esmagados que se sabe o valor que levamos dentro. E Kafka tão perdido, ou mais perdida eu, que sempre pensei ser a Metarmofose a obra-prima e, vai-se a ver, e é o Julgamento ou o Castelo. Encontrei-o no Café Louvre e numa rua em que ninguém parou. Kundera ainda mais. Coitado, ainda não morreu.
A serendipidade que nunca há-de deixar de maravilhar-me. De certa forma, vivemos todos para isto, a fortuna de um par de acidentes felizes, a deriva do acaso que sempre faz por nos encontrar. Sem querer, dou por mim no subúrbio duma noite, luzes coloridas que animam o fim da tarde, pessoas felizes que riem e bebem e dançam ao largo do trânsito. Choose to be happy. Depois, a festa da aldeia, ia eu p'ra ver o comunismo e suas conspirações, e encontro o melhor hamburguer de Praga, palavra de Dalai Lama. You've come along a long way, baby. É bonito, isto.
O Klementinum. Depois da mais bonita livraria do mundo, a mais bonita biblioteca do mundo, a vida quase feita. Um cheiro a livros que nos entra pelas narinas adentro mal a porta se abre, os olhos que não encontram sítio onde pousar porque se quer tudo e a palavra é imensa.
O sem-abrigo Joe que, muito provavelmente, não se chama Joe, na sua cabeleira branca a contrastar na sua cara muito vermelha de Sol, desdentado e que me fez companhia num banco de jardim, enquanto fumava um cigarro. Ele não sabe a minha língua e eu não sei a dele e, mesmo assim, repete o meu nome na perfeição. Marisa. Ri-se muito quando lhe dou um passou-bem. Vai dizendo coisas que não entendo e nenhuma me parece palavra de pedir. Pergunta se sou turista. Depois passa um rapaz vestido de copo de cerveja, não perguntemos porquê, e o Joe ri-se muito e alto na sua boca desdentada. Parece uma pessoa feliz, o que é logo meio caminho andado para se ser, de facto, feliz. Entretanto, olha-me e, no meu nulo entendimento de checo mas merlhorzito nos gestos mais básicos, diz-me que tenho umas boas mamas. Se era isto ou não, é agora difícil apurar mas ele continou a rir-se e eu ri-me com ele. Nada melhor do que conviver com um sem-abrigo para nos elevar o ego. No fim, beija-me a mão com um Au revoir. Assim é o Joe.
Depois há, claro, o castelo, a vista do castelo, as ruas que levam ao castelo, as casas, as ricas e as esventradas, a old town, as torres da igreja, a casa dançante, o rio, a morte iniciando o seu teatro a cada hora, entre santos, apóstolos, signos, estrelas, numerais, cardinais. Esta, afinal, uma terra de astronomia, alquimia e outra sorte de magias. Depois há, claro, a praga de turistas na Charles Bridge, a dar nome à cidade. No silêncio do impossível, quando todas as pragas regressam em manada aos seus hotéis e a noite ganha o princípio de um nevoeiro, é aquele o melhor sítio para sentir a cidade respirar, centenas de anos de história debaixo das pedras dos pés e o alinhamento perfeito dos astros em cada estátua, a via sacra de todas as reflexões e consagrações, caminho de saudade e perdão, começos e fins.
Pouca coisa me impressionou mais do que os mendigos, porém. Primeiro, a mendicidade dos turistas, a mendigar milagres, desejos e caprichos em fila, esfregando o corpo dourado, incandescente, da imagem do santo milagreiro, não há pai que aguente. Esfregadinho, esfregadinho, esfregadinho, como diria a minha avó se visse aquele espectáculo. Finalmente, a mendicidade dos mendigos porque só ali vi mendigos assim. Ajoelhados e de cotovelos no chão, outros, de quatro, sempre de cabeça baixa para que não ofendam ao dono em passeio. Prostrados, subjugados de meter dó, não tanto na sua invisibilidade quanto mais na ausência de vergonha. Esta, a praga que lhes rogaram.
Esta, a Praga que me rogaram.
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