Há coisas que só se podem escrever quando deixam de doer, escreveste. Eu pensava que já não doía. A bem dizer, já não deveria doer. Já passaram tantas luas e nós já fomos tantas pessoas. Já nos perdemos tanto. Surpreendo-me sempre com a minha predisposição para o engano. O instinto é um ditador e eu devia ter confiado. Ainda anteontem com as moedas. Eu pensava que já não doía. Mas há frases capazes de ruir de uma assentada o alento a que o peito se habituou. O coração conformou-se, a memória não. A memória da dor sobrevive à dor. E não faz sentido nenhum que assim tivesse sido, na verdade. As palavras são sempre as palavras e a sua circunstância e naquele tempo a nossa circunstância era outra. Mas o corpo é estranho e só percebeu isso quando a primeira lágrima correu para dentro da boca. A partir daí já não adiantava. Agarrei-me às tuas palavras com a mesma sofreguidão de antes e o mesmo assombramento desesperado de quem descobriu um tesouro ou um refúgio. Falamos a mesma língua e isso só pode ser um milagre. Li como quem atravessou épocas e mundos sabendo que o sol a cada dia morre pelo mesmo lado e, a cada tentativa, desaguo na mesma conclusão. Seria impossível que não me tivesse apaixonado por ti.
E foi como chegar a uma casa de infância e saber ainda em que móvel se guardam os copos. Uma certa perspectiva, sim, um certo desconforto também, o meu egoísmo latente e envergonhado. Eras feliz e não era eu. Meço o tamanho do sorriso, a onomatopeia feita poesia e sinto a falta do teu calor no meu ouvido. Não se me afigura poesia mais autêntica do que essa e olha que eu leio muito poesia. Todavia, resisti ao primeiro impulso. Li-te sem querer entender-te. Já quis estudar a matéria onde o sangue te ferve primeiro. Sei que nunca te vou ver dançar assim, por exemplo. Já quis saber em quem pensas quando ouves canções de amor. Por quem choras nas noites mais longas. Já rondei o abismo da tua ferida. E já pesei nas mãos o tamanho da tua ausência apenas para me encontrar esmagada pelo silêncio, a resposta que não vem e o caminho mais certo em contagem decrescente. Desta vez, não procurei nada e talvez por isso encontrei tudo, até esta saudade que me fazes. A vida já mudou tanto desde aquele princípio e só esta saudade de ti não se vai. Li-te e juro que não te quis entender. Mas quis amparar-te, quis beijar-te, quis aplaudir-te, quis abraçar-te, quis conhecer-te, quis amar-te, quis guardar-te. Meu tão bonito engano, my beautiful mess.
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