Pietà.

Uma distração. Um esquecimento. Exaustão. Talvez seja o mais insignificante dos pormenores. Bastou. Era Quinta-feira e bastou esse momento, um segundo multiplicado por sete horas, para mudar uma vida inteira. O passado que existisse, o futuro que viesse, acabaram ali. Isto já é outra coisa, outra história, não aquela que começou como todos os dias às sete da manhã. Um momento, espera, pronto, ruiu. E vê-se agora um homem em desespero com a filha nos braços, corre para o meio da estrada, mete-se à frente do trânsito, implora que lhe levem a filha, que a salvem. Ainda tem esperança, ainda não sabe ou não quer acreditar. Vê-se os outros filhos a perguntarem pela irmã. São pequenos, também. Talvez a idade os proteja, talvez julguem apenas que a irmã se demora, voltará amanhã para ir à escola. Serão sinalizados. Levarão consigo essa marca indelével, um novo guião de rotinas. Porventura, haverão de decidir retirá-los daquela família. Para seu próprio bem, dirão. Mas quem, senão o tempo, sabe o que é para nosso bem? Vê-se uma relação a esfumar aos poucos, quebrada por aquele momento. Ou que talvez estivesse já moribunda e esta fosse só mais uma forma de chegar ao mesmo destino. Aquele homem que agora vemos no meio do trânsito queria ter sido pai e mãe naquele dia, mas chegou tarde. Quer desculpar aquela mãe, quer desculpar-se a si, e não consegue, está tolhido de raiva e de angústia. Para a maioria de nós a vida é dura. A vida não é para os que se ficam. E ele já não sabe se quer ficar. A partir daquele momento, viver passou a acto de resistência. Daquela mulher, não nos atreveremos a dissertar. Se a dor não é comparável ou transaccionável, poderemos apenas presumir os estilhaços daquele coração e o caos em redor como se arrancado do peito. O poema fala da sorte de não vermos os filhos morrerem antes de nós. Talvez ainda maior sorte seja não termos nisso uma culpa negligente.

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