Tudo se transforma, até as memórias. As histórias que lembramos são alvos em movimento, um passado em constante mutação. O tempo ensaia virtudes, acrescenta pontos, omite detalhes. Consegue até inventar o que lhe convém. Todos os amores que foram são perfeitos, todos os mortos, santos. Até mesmo a tragédia – até a tragédia da paixão – se minimiza e relativiza. Há episódios que já perdi por completo e que nunca quis perder. Há demasiados coisas que não consigo lembrar, por mais que me esforce.
O passado não é aquela pedra imóvel que os tempos verbais apregoam. Segue em permanência, edita-se como se edita um eterno disco. Pensei hoje nisto quando falávamos da traição, aquela em que não acreditas e aquela que eu senti, numa qualquer noite de levar o coração sofrido e de sair para a rua a alinhar chakras. A madrugada sem sono e o fado da Gisela João fazem-me ainda pensar nisto. O passado é esse conjunto de versões que vamos coleccionando, adulterando, apagando. No final, não teremos nada real a que nos agarrar. E temo que nunca tenhas entendido bem o que digo quando digo que nunca te quero perder. Como ele disse, agora só resta tornares-te o poema.
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