Queimar tudo. Alugar uma casa num lugar sem história
na história da minha vida, um lugar de postais antigos,
desbotados, e do passado guardar apenas uma urna
de cinzas, no compartimento por baixo do lava-louças.
Ver filmes sem mérito, ler livros sem arte, ouvir óperas
cómicas e inêxitos impopulares e anacrónicos. Tentar,
sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe
miúdo e roupas com defeitos às ciganas. Ser anónimo
por fora e por dentro, criança que não se conhece
nem quer conhecer e que procura apenas o início e o fim
de um carreiro de formigas, revelação suficiente
para quem ainda não desperdiçou a vida a perscrutar
os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber
pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade
do diálogo impõe. Emular os pioneiros americanos,
pecadores em busca de recomeço e horizonte, longe
das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes
e das sibilas e, sobretudo, da inexorável morte do amor.
In Desvão, Miguel Martins
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