Cancers should beware of snipers today.

Terá sido das viagens que mais me marcou e há tanto a dizer que será, necessariamento, pouco e emaranhado agora à distância de meses. É, porém, um desses casos não raros em que não se consegue falar, mas onde também é impossível ficar calado. Assim a Bósnia e Herzegovina e, particularmente, Sarajevo, sem esquecer o caminho até lá, com a natureza a exibir-se em cada canto. Em Mostar, o primeiro contacto com a guerra. Do not forget. Marcas de balas nas paredes, mas também em persianas ou num portão, a fazer lembrar a realidade. O cheiro e o fumo dos Ćevapi que se prolonga noite adentro e o cheiro a pão quente nas pekaras logo de manhã cedo. Romãs, também. A ponte, claro está, e a beleza de encontrar-me sozinha ali no revelar do dia. As pedras reluzentes da calçada, não da chuva, mas do uso. O pôr do sol a engolir a vila sem pressa. Depois, Sarajevo, como se fosse ainda 84 e o Vucko nos saudasse à chegada. Onde as religiões se misturam e o velho e novo convivem. Para que lado olhaste mais demoradamente? Antes de Londres ou Paris, já Sarajevo era prova viva de multiculturalidade. Os homens sentados nas oficinas no bazaar de tempos otomanos a bater o estanho. O cheiro no ar a café. Bósnio e servido com o mesmo ritual de outros tempos, na dzezva. Susan Sontag à espera de Godot, a resistência também através da cultura, que nunca deixou de se mostrar. As centenas de livros queimados. As rosas no chão, insuportáveis. A montanha que os abraçava e que foi então ameaça, com o bobsled cravejado de buracos de balas, um símbolo de orgulho e conquista subitamente tornado armadilha. Uma cidade em que todos se davam bem e por isso foi tão inconcebível o que lhe aconteceu. Even we don’t understand what happened to us. O cerco mais longo da história moderna. Para onde se olhe, há marcas nos edifícios. O campo olímpico transformado em cemitério e faltou espaço. As personagens convertidas ora em heróis ou vilões conforme a época e sítio. Pede-nos desculpa se em algum momento parecem um povo antipático. Culpa as feridas de guerra, que ficaram em todos e ultrapassam gerações. War was inside me, contou ela, para quem uma garrafa de água e uma cebola foram o melhor presente de aniversário. Refere-se a nós com uma reverência e gratidão que não merecemos, pois somos nós, os friendly tourists, e os nossos países, os dadores, que vão reconstruíndo a capital. Ambicionam, como outros, à utopia da UE que lhes prometa fundos e proteção. A mesma que lhes faltou. Bem-aventurados aqueles que construiram o túnel e escaparam ao Snipers Alley. Civis mortos indiscriminada e ininterruptamente. Cancers should beware of snipers today, brinca o jornal. É insuportável a ideia de que seres humanos pagaram e se deslocaram em bando aos fins-de-semana para matar outros seres humanos por lazer, qual safari. Só escrevê-lo enche-me de asco e horror. Bem-vindos ao inferno. E nem se fale de Srebrenica. Como é possível que não se fale mais do que ali aconteceu? Na Galerija 11/07/95 fiz-me de forte, primeiro. Imaginava ao que ia, mas mesmo assim, logo a supresa. Ouvir falar de Portugal, em Sarajevo, numa galeria sobre o massacre de Srebrenica. Uma das viúvas diz não saber se ama ou se odeia Portugal – a derradeira camisola que o marido levava naquele dia tinha na etiqueta “made in Portugal”. A crueldade dos relatos e das fotografias chegam num extremo. Bonecas degoladas e minas debaixo de cadáveres. Parece que na guerra permite-se tudo, até que percamos a nossa humanidade. E se as atrocidades são chocantes, é o desamparo que me dilacera. Safe area, uma merda. The bearer of this card is under the protection of the UN forces, uma merda. United nothing. United nothing. Enganados, humilhados, discriminados. E aqui, não aguentei a dor e a vergonha e tive de levar as mãos à boca num choro descontrolado que me obrigou a sair da sala para não perturbar os outros. Olha-se para a Ucrânia, para o Afeganistão, Sudão e conclui-se que não aprendemos nada. Um dia visitaremos memoriais e choraremos a nossa impassividade. O mundo é um constante clima de guerra pontuado por breves períodos de paz, dizem e talvez seja verdade. Na Bósnia, nota-se essa paz frágil, uma tensão quase palpável no ar à conta de conflitos vizinhos e nacionalismos glorificados, não acordem o monstro. Sarajevo é uma história de luz e escuridão. É 2022 e, quando perguntado sobre em que parte da capital se está, o taxista responde “na parte Sérvia”. Quando entre as ruínas daquele hotel encontrei um azulejo onde se lia, nas costas, “made in Yugoslavia”, era ainda 2022.

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