Morte


"Vir a morte e levar-nos. E não fazermos falta a ninguém. Nem a nós. Que outra vida mais perfeita?" Vergílio Ferreira
A minha avó morreu. Morreu. Morreu. Morreu. Morreu. Morreu. Se repetirem muitas vezes a palavra (qualquer uma), ela deixa de ter um sentido, torna-se apenas um conjunto de letras, uma combinação de sons e entoações. Morreu. Morreu.


Tenho-a dito, melhor, tenho-a pensado, demasiadas vezes por estes dias. Somos nós quem atribui um significado às palavras e é por isso que algumas passam a ser só nossas ou de mais alguém (veja-se as private jokes). Só hoje dei um significado a “morreu”.
Talvez, afinal, não sofra de uma qualquer deficiência emocional à maneira d’ “O Estrangeiro”. Ou talvez a sofra, mas com uma variante – tal como se aplica o princípio de que “não há crime sem corpo”, eu precisei de ver o corpo para que houvesse morte. Só então a morte existiu. A plena consciência de um fim. E, com isso, a inevitável descoberta de que também nós não somos imortais. Dizem que o ser humano é o único animal que tem consciência de que vai morrer um dia. Eu, só hoje a tive de facto. É por isso inevitável, que me sinta hoje intrigada, aterrorizada, amedrontada, mas consciente, talvez demais.


Ser. Ter planos, sonhos, futuro. Estar a pensar nalguma coisa ou em alguém (pergunto-me quais teriam sido os últimos pensamentos, pergunto-me se ela teria tido consciência de que iria/estava a morrer). E depois, sem que o notemos, suspeitemos, imaginemos. Ela vem sorrateira. Um acidente, uma doença, um AVC. Morre-se. E acabou. O fim inexorável. O Nada. Absoluto e ridículo. Hoje somos. Amanhã

não. Deixar de existir. Mesmo!
Sem aquela ideia reconfortante de que há uma vida eterna depois, melhor, maior (preferia tanto acreditar que sim!). Sem o mito de Paraísos, Infernos e meios-termos, Purgatório. Não fica ninguém a velar por nós. Ninguém a ver como choramos. Ninguém a pensar no quanto a vida poderia ter sido diferente. Não é um sono. Não é uma viagem. Acabou. Assim. Sem mais. Simplesmente.


Não morre só o corpo, mas tudo o que fomos, tudo o que fizemos, tudo o que sonhámos, todos os que amámos. Não só a vida, mas todo o universo. Porque os outros continuam a existir, o sol continua a brilhar, a casa mantém-se de pé, o cão (que ficou para mim) continua a ladrar, a vida continua a existir. Mas para os outros. Só quem morre não pode mais sabê-lo.


E os que ficam, os que resistem, hão-de lembrar. Deixa-se de ter uma existência palpável para se ser uma lembrança ocasional no pensamento daqueles que eram nossos. Com, sorte, estes transmiti-la-ão aos filhos. Seremos só um nome. E, teremos então uma segunda morte, menos visível, menos dolorosa, mais lenta. Morreremos no tempo. Como morreram os avós dos nossos avós e os bisavôs dos nossos bisavôs. Nem sequer seremos insignificantes, porque os que vêm nunca saberão que existimos um dia. Tal é a nossa pequenez.


Achamo-nos toda uma grande coisa, porque temos uma boa profissão, estudos e ideias, pessoas que amamos e que nos amam, haveres, conquistas. E afinal…não passamos de farrapos, detritos, restos. Marionetas nas mãos do tempo. Joguetes do nosso corpo. Carne, nervos, sangue, ossos, prontos para decomposição. Um corpo vestido, limpinho, bonitinho, arrumado dentro de um caixão, coberto de terra, verdadeiro alimento para vermes.
Um grão de pó que o vento da vida levantou e depois deixa cair, sem qualquer cuidado ou preocupação. É isso que somos. Só. Tão-somente isso…


Perdoem-me o cinzento deste texto, ou melhor, o luto que ele encerra. Não quero, de modo algum, com isto dizer que encaro esta morte como algo exterior a mim. Pelo contrário. É por me ser tão interior e tão íntima, tão minha (porque somos nós, com as nossas crenças, ideologias, contexto, que atribuímos um significado nosso às coisas), que não consigo deixar de lhe encontrar o seu quê de horroroso, cruel, impiedoso, frio. Seria ingénuo acreditar que há um para além disso ou que é só isso, apesar de preferirmos não pensar naquilo que é a mais triste verdade.


E é por causa dessa nossa condição humana que quando vejo a minha avó, não a vejo inerte e inanimada, enterrada num cemitério. Nem penso na última vez, a beijar-lhe a testa no hospital e ela a abrir por um breve instante os olhos, eu sem saber sequer se ela me reconhecera.
Vejo-a como uma mãe formidável, capaz de criar 7 filhos e outros que lhe foram aparecendo. A matriarca. Uma mulher corajosa, que viveu a sua juventude sozinha em Lisboa, e preferiu (e conseguiu) viver sozinha na sua própria casa, aquando da morte do meu avô. Uma mulher resmungona, crítica, divertida, generosa, com um carácter muito seu. E uma avó carinhosa e atenta, que espera ansiosamente por mim no fim da missa. Vejo-a, especialmente, no fundo dos olhos do meu pai...


Dizemos tão poucas vezes a quem amamos, o quanto os amamos, não é?
Primeiro foste Emília. Depois Mãe. Depois Avó. E agora? Nada. E mesmo assim, Tudo.
A vida continua. Nunca sem ti. Nunca para além de ti. Talvez por causa de ti.
"O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado."
Vergílio Ferreira, in 'Escrever'

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