"Não existe escravidão mais imoral do que a da consciência. Essa é a cultura da involução, do inferno, da morte, porque leva irremediavelmente ao ressentimento, ao crime, à destruição.
Onde foram parar todas as verdades sagradas e profanas, todas as vidas sacrificadas por defendê-las que hoje são consideradas crimes contra a humanidade?
Um dos grandes erros filosóficos é negar ao indivíduo o direito de renunciar à vida. O que significa que nunca se lhes quer reconhecer que a vida é propriedade dele. Livre e adulto.
Não se ensina a arte da boa morte porque se defenda a sacralidade da vida, mas por receio de que os escravos renunciem em massa ao inferno de umas vidas miseráveis.
É coerente que os dominantes justifiquem o sofrimento como um dever moral porque é a fonte do seu prazenteiro bem-estar. O que é absurdo é que aqueles que foram escravos, quando são legitimados pela consciência colectiva para corrigir o abuso, o erro, ou o crime, continuem a aplicar as leis do antigo amo e seus fundamentos - refiro-me aos socialistas e à Constituição.
O direito de nascer parte de uma verdade: o desejo do prazer. O direito de morrer parte de outra vontade: o desejo de não sofrer. A razão ética põe o bem ou o mal em cada um dos actos. Um filho concebido contra a vontade da mulher é um crime. Uma morte contra a vontade da pessoa também. Mas um filho desejado e concebido por amor é, obviamente, um bem. Uma morte desejada para uma pessoa se libertar da dor irremediável, também.
A vida parte de uma verdade. Evolui corrigindo sistematicamente o erro. O manual de instruções é a natureza. Quem o interpreta erradamente cria o caos.
Quando se nega o direito de renunciar à dor sem sentido, proibe-se também o direito a ser mais livre, mais nobre, mais justo, à utopia de libertar-se de uma armadilha em que o enfiaram os legisladores. Exterminaram as feras para ocupar o seu lugar, e agora fazem de mestres. Ditam leis e fundamentos de direito, criam escravidões do que nenhuma razão consiga escapar. A razão criou para a sua espécie uma ratoeira infernal.
A liberdade significa a liberdade do todo. A justiça significa o amor, bem-estar e prazer para o todo. Isto é, equilíbrio.
Nenhuma liberdade pode ser construída sobre uma tirania. Nenhuma justiça sobre uma injustiça ou dor. Nenhum bem universal sobre um sofrimento injusto. Nenhum amor sobre uma obrigação. Nenhum humanismo sobre uma crueldade, seja qual for o ser vivo que a sofra. A diferença entre a razão ética e a crença fundamentalista é que a primeira é a luz, a libertação; a segunda a treva, a armadilha infernal."
in Cartas do Inferno, de Ramón Sampedro
Demorei algum tempo até decidir qual o excerto do livro que iria deixar por aqui. Optei por um dos textos mais pequenos, mas ainda assim rico em polémica. Contudo, todo o livro é uma colectânea de cartas verídicas de Ramón, um homem espanhol, tetraplégico, que durante 30 anos pediu a eutanásia, que sempre lhe foi recusada. Finalmente, a 13 de Janeiro de 1998, libertou-se da vida.
É um relato comovente, que obriga a uma reflexão profunda, e que serviu de mote para o filme Mar Adentro. Para quem se interessar pelo lado mais humano deste tema, aconselho vivamente.
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