Depois tens aqueles dias

Depois tens aqueles dias em que te sentes inútil e o mar te enfurece e o sorriso dela, que sempre te recorda o porquê, não te basta.
Olhas-te no espelho e só encontras esse pedaço de carne poroso e oleoso, uns globos embutidos que têm vida própria e a quem não consegues iludir, essa saliência que sopra, um buraco sem fim que debita palavras sem sentido. Detestas ver-te ao espelho. És mesmo tu? Quem é esse outro que te retribui o olhar? Não te reconheces ali.

Fazes caretas, metes a língua de fora, brincas com as sobrancelhas, mas ainda não és tu. Não te vês ali e não te vês em lado nenhum e isso irrita-te profundamente. Depois vais mais longe e falas sozinho. Tão-somente para teres a certeza de que estás só. Não estás maluco, estás apenas tristemente só em frente a um espelho. Repetes a mesma palavra durante um bocado e ela deixa de fazer sentido. Achas sempre engraçado quando isso acontece. Perder o sentido, o significado. O dogma da palavra a tornar-se mistério. A certeza, a realidade e o nome que lhe dás, é então só isso, palavra, entoação, ditongo.
Descobres então que o teu nome também não te pertence e talvez seja por isso que te surpreendes quando ouves o teu nome na boca dela. É tão fascinante a linguagem, a comunicação, esse consenso que torna um som, ideia, Babel, naquilo que tocas e conheces e sabes!

Só pensas parvoíces. A quem interessa isso, o fascínio da linguagem? Todos crescem menos tu. Tu, que tinhas tudo planeado e que ias ser brilhante e diferente. Contigo seriam só conquistas, nenhum medo e nenhum erro, porque tu tens de ser especial, com essa tua mania que ostenta quem sempre almoça nos restaurantes ao Domingo. Contigo ia ser melhor, porque tu eras melhor, exemplar, modelo.

Mas depois tens aqueles dias em que te sentes inútil e o mar te enfurece e o sorriso dela, que sempre te recorda o porquê, não te basta.
Abres as mãos, como quem se apieda da sua própria miséria humana. Abre-las como quem estranha o que vê. O que é isso que se vai mexendo? Ossos e unhas e cartilagens. Falange, falanginha e falangeta. Escandalizas-te. Reparas que as linhas que se evidenciam na palma das tuas mãos estão longe do traçado original. Nelas não descobres qualquer sentido, qualquer rumo ou norte. Talvez seja por isso que te abomina tanto aquelas ladaínhas, aquelas da vocação e do saber-se desde pequeno o que se quer ser. Porque, afinal, tu já és grande e ainda não o sabes.

Olhas-te, insignificante, despojado de sentido, nú, e não percebes a finalidade de ti. Não há nada em que sejas realmente bom ou excepcional. Não tens engenho nem arte que te assomem do fundo, sem hesitação, qual apelo das entranhas da terra. Procuras mas não encontras um dom, uma habilidade ou uma especialidade, e desesperas. Tu és só isso que se vê a olhos nús, que enganaste tudo e todos, mas que (só tu sabes) é vazio.

Sentes-te inútil, o mar te enfurece e o sorriso dela, que sempre te recorda o porquê, não te basta. Mas depois ouves a sua voz, sentes o seu toque, cheiras o seu aroma de intimidade. Ela diz-te que um dia já foste o espermatozóide mais rápido, o melhor. Soltas uma gargalhada e o dia renasce.

2 comentários:

JAM disse...

.....o texto foi escrito por ti?........hum..........em uma palavra: psiquiatria!
LOL, tou a reinar, linda, bonito texto tens aí....bonito mesmo!
O J.A.M. gostou.LOL

Marisa disse...

Pois, acho que isto já só lá vai mesmo com psiquiatria! :p
Obrigado*