Limite da Loucura

Três da manhã. (Algures no mundo, na Nigéria, alguém estaria a morrer de fome. Ou com um tiro na cabeça, no Brasil, por um assaltante cobarde. Àquela hora, uma italiana iria descobrir que ia ser mãe solteira. Uma chinesa estaria a ter sexo pela primeira vez, sem saber que aquele ainda não era o rapaz certo. Dois quarteirões acima, aquele que era o certo estaria a masturbar-se enquanto vê vídeos pornográficos na internet. Numa tribo africana, uma rapariga estava a casar com um homem bem mais velho que ela. Na Holanda, um grupo de estudantes Erasmus estava a fumar uma valente ganza e uma das raparigas acabou por fazer amor com outra. No Texas, um negro estaria a escrever a sua última carta antes da execução do dia seguinte. Uma mulher estaria a enganar o marido àquela hora e a ter o primeiro grande orgasmo desde que casou. Em São Paulo, um casal descobre o amor pela primeira e derradeira vez, quando se encontra no aeroporto. No Canadá alguém estaria a fazer um desfalque. No Algarve, estaria mais uma festa de tias e tios a meio, onde todos dormem com todos. A Lili estaria a dormir àquela hora? E o Mourinho, a mandar uma? E o Bush? E aquele mendigo dos semáforos, será que se safou por mais um dia?).

Ela gostava de ter aqueles pensamentos. Imaginar-se numa vida que não lhe pertencia e deixar-se dominar por ela. Viver mil histórias num único momento e não caber em nenhuma. Dava-lhe uma sensação excepcional de relatividade. Hoje és. Amanhã não sabes. Era nisso que pensava às três da manhã. Deixou-se cair com força sobre a cama, como quem, sem forças, desiste. Sentia-se viva por dentro, com a alma agitada, o diabo no corpo a querer tentá-la. Por fora, naquilo que era palpável e só às vezes vísivel (quando ela deixa e alguém se esforça e persiste) era só uma sombra fugidía do mundo, encurralada naquele tempo e naquele espaço. Abandonou os pensamentos inúteis, onde se inundava como em lodo, e tentou esvaziar-se de tudo.

Mas foi impossível. Restou aquela voz suave, que lhe canta ao ouvido em noites tristes, lhe geme ao ouvido em noites quentes e lhe sussurra "amo-te" ao ouvido por todas as vezes. Não se conseguia libertar da voz. Estava entranhada nela, como cicatriz profunda, que não sara e que a marca e distingue. E, como a cicatriz, a voz dizia: pertences-me. A voz brotava de dentro de si, qual cristão possuído, e ela não podia fazer nada senão calar a voz com a sua própria boca, beijando a voz ou misturando-se com ela, desfazendo-a num grito surdo. Sim, é possível. Ela sabe.

Quando a voz adormeceu, de mansinho, ela fechou os olhos como quem espera a vida. Sem que a voz se apercebesse, a razão forçou a entrada para perguntar onde acaba a coragem e começa a loucura. Imersa em dúvida, ela abriu os olhos e olhou demoradamente para a voz que dormia ao seu lado, respirando devagar e parecendo um anjo. Sorriu. Adormeceu então de vez e sem hesitação. Dentro de si guardava uma certeza, como quem guarda o mais precioso tesouro do mundo. Era a voz.

1 comentário:

Anónimo disse...

Hoje fico por aqui. You have a hell of a blog: it never ends!

Até amanha!