Expiação

Nota-lhes a distância (não se preocupam em disfarçá-la), as palavras mudas que mais não são que sílabas consentidas de quem não quer iniciar dada conversa sabendo de antemão que, no final, tudo resulta no mesmo de sempre. Não sabe o porquê, estava distraída demais para o entender. Mas está lá. De novo.

Na altura ela era demasiado ingénua, estupidamente jovem. Ultrapassou todos os limites, confundiu toda a dor que lhe nascia no peito, ignorou o mais importante. (estás feliz agora?) Não suportava mais aquilo. Os telefonemas do amigo de trabalho, os bilhetinhos escondidos, o perfume que ela usava e que ainda hoje lhe provoca náuseas de memória.

Não podia permitir que aquilo continuasse. Como se atrevia ela a viver tão à vontade, tão sem culpa, tão evidente para toda a gente e, só ele cego para ela e para tudo, não via. Então ouviu telefonemas, reuniu provas, morreu por dentro e confrontou-a: contas tu ou conto eu. (estás feliz agora?) O tempo corria ansioso, nervoso, hesitante e preocupado e ela não contou. Teria então de contar ela, que o não queria fazer. A bomba foi obrigada a explodir. Sexta-feira.

Choveram lágrimas, das contidas e das manifestas. Choveram insultos e malas, numa pressa de fugir do escandâlo e dos perigos da raiva. Eles, inocentes, estavam lá, encerrados no quarto e esperançosos de que aquilo passasse. A porta fechou-se. Mas, antes de sair, ela volta-se para a olhar fundo no olhos e pergunta: estás feliz agora? A pergunta que nunca mais poderia apagar da sua vida.

Minutos depois o pai sai também, os olhos vermelhos num conflito de dor, raiva e desprezo. Leva a pistola consigo. Ela está de robe, olha o nada na janela ampla da varanda da sala, sem saber o que fazer. Fica ou vai atrás. Liga para alguém. Para quem? Liga para o pai, que diz que está tudo bem, que vem já. Ouve-lhe a voz de choro nas palavras. Agarra contra si o cão, pega-o ao colo e aperta-o com mais força, os pêlos do cão absorvem as suas lágrimas que jorram incessantes. Diz-lhe em pranto "vai ficar tudo bem, calma". Di-lo para si mesma. Reza também. Reza muito, reza tudo o que sabe, fala-Lhe como nunca fez antes. Aguarda na sala, sentada no sofá. Tem medo, muito medo. Preocupada e com muito medo. Carrega agora o peso da sua consciência. Ela é a culpada daquela situação. Se ela não tivesse dito nada (estás feliz agora?)...

Não dorme, não conseguiria. Sentada no sofá, com o cão ao colo, espera. O pai chega horas depois na madrugada, não diz nada e deita-se. Ela vai deitar-se também, ouve o choro do pai na almofada, o telemóvel que toca constantemente, não dorme e a cabeça parece explodir de tanta dor.

No dia seguinte a família, protecção sempre presente, aparece. O pai continua com a pistola no cinto, indiferente. Não o deixam sozinho, acompanham-no. Acompanham-nos também a eles. A amiga dela telefona mais tarde: conta que ela está lá e que não pára de tremer, treme muito. Depois passa-lhe o telefone e ela pede para falar com ele, só com ele, o menino de sua mãe: queres vir ficar com a mãe? (estás feliz agora?).

Voltou no Domigo à noite. Não houve explicações, não houve conversas. Deitada, ouviu-os a terem sexo, eles não se importaram com o barulho. Ela não entendia e sentia-se enojada com aquilo tudo. Um faz-de-conta, como se nada tivesse sucedido, como se não fossem precisas mais palavras, como quem estala os dedos e recomeça. Durante muitas semanas olhou-a com estranheza, como quem não pertence mais ali, não depois de tudo. Evitava-a. A psicóloga haveria de identificar nela uma qualquer obsessão que conduzira àquele desfecho, um sentido de posse injustificado: a nossa casa, o nosso carro, o nosso camião, a nossa família. Não gostou do que ouviu e nunca mais voltou à psicóloga. Cresceu sozinha e discreta, envergonhada do que sentia: odiava-a. Cada dia teria de ser uma conquista, cada passo uma vontade.

Infelizmente, demorou demasiado tempo a perceber que ela era sua mãe. Hoje, não se pode ainda desculpar (estás feliz agora?) mas não hesita já. Sabe o que importa.

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