Infância feliz

Brincam dizendo que qualquer dia fundo uma igreja. Não sabem elas que já a tive, com direito a hóstias de pão e tudo, quando Lhe dirigia cartas, a Ele que também se diz Pai dos animais. Pela Lassie, pelo Bigodes, por aquele pássaro. Estávamos a fazer-lhe o velório, o pequeno corpo dentro duma pequena caixa, tapado por um fino napron, em cima do sofá e a rapariga veio e, cega e indiferente ao que de sagrado sucedia naquele local, sentou-se distraída em cima da caixa, no sofá. O avô haveria de estar lá fora a preparar uma cruz improvisada com canas e cordel e ajudar-nos-ia a abrir o buraco para o enterro do pássaro espalmado.

Também não sabem que fundei uma sociedade secreta, que me transformava em Senhor do Grão de Areia, que tinha um cajado mágico e uma mesa que era também um mapa e onde delineávamos estratégias contra os nossos inimigos de morte: os Quinas (a marca dos fósforos), que encontrávamos frequentemente quando íamos com a avó ao pinhal, à caruma e às pinhas.

Qual líder inata, tinha os meus seguidores - o meu irmão e o meu primo - que não raramente eram submetidos ao pior dos castigos do meu reino: o pau dos bicos. E sim, de facto magoavam, mas uma rainha tem de se fazer respeitar. Habitava um trono majestoso, no cimo de toda a lenha acumulada lá fora. Era meu por direito. E escondíamos tesouros valiosos, convencidos de que poderíamos a qualquer momento ser alvo de ataque inimigo. Procurem debaixo da figueira e encontrarão uma pequena caixinha colorida com uma nota de réis e moedas antigas dentro. Terão mais sorte do que nós, que nunca a chegámos a encontrar.

1 comentário:

Papoila e Orquídea disse...

Que bonito... Gostei mesmo muito.

Poucos tiveram infância assim.