Freud explica

Sonhei contigo mas não sei porquê, sobretudo, agora. Freud há-de explicar. De qualquer forma, sempre te preferi nos sonhos, quando me apareces sem dificuldade sem precisar de te chamar. À conta de já te ter pensado tanto, quando te evoco as linhas do teu rosto aparecem desiguais, trabalho-te o olhar e o sorriso só para te ter como te quero, para sorrires e esse sorriso ser para mim. A imaginação e a memória são selectivas e pouco humildes e, por não terem limites, nem sempre são de confiança. Mas, nos sonhos, apareces verdadeira e real, livre do meu poder, espontânea em carne e alma, consigo até ouvir a tua voz. É por isso que te prefiro nos sonhos. Às vezes dói, pois não te controlo, mas pelo menos és de facto tu.

Estavas, acompanhada pela E. em minha casa ou, diga-se correctamente, na casa dos meus pais. A casa estava em obras de remodelação e havia mais gente, amigos meus, lá em casa. Eu dormia no quarto que é dos meus pais. Tu e a E. dormiram num quarto com duas camas que, na realidade, não existe naquela casa. Quando acordaram foram dar os bons-dias ao outro quarto, onde eu já estava acordada, e saíram para tomar banho.

Não trocaram qualquer espécie de carinho na minha frente, o que supus tratar-se de uma atitude de misericórdia ou puro respeito pela anfitreã. Estavam na minha frente com uma naturalidade indiferente e espontânea e lembro-me que a Lena me olhava com incredulidade, incentivando-me a falar contigo. Mas não falamos mais do que o necessário. Quando posteriormente me desloquei à casa-de-banho senti uma vergonha enorme e, rapidamente, constatei que o terão comentado entre vós - estava suja e com o cimo das paredes cobertas de um bolor escuro e nojento. Mas vocês não disseram nada.

Estranhei durante toda a manhã a vossa seriedade e o frio dos afectos mas não me atrevi a comentar. Depois desceram as duas o entulho que antes eram escadas, uma atrás da outra, distantes, enquanto eu te olhava obsessivamente da varanda. Freud há-de saber explicar.

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