Não fiz de propósito mas, quando aconteceu, não o consegui mais travar. Estava a arrumar as prateleiras sob a cama e achei que era chegado o tempo de colocar aqueles livros junto aos outros, na estante da sala, retirar-lhes enfim o lugar de destaque e secretismo que largamente têm ocupado. Mentiria se contasse que não recordo da história de cada um, do momento que antecipou a sua entrega, de todas as razões que os fizeram meus: o primeiro, selecção dos melhores poemas que têm, e que chegou tímido e disfarçado de aniversário, pelo correio; o segundo, de crónicas, foi o mais ansiado e o mais sentido pois que eram as tuas mãos, finalmente, que tocavam as minhas nessa entrega que não era só de palavras mas de vida; o último, ternas imagens daquilo de que é feito o amor, tão iguais os gestos nossos aos dos animais, que veio no dia convencionado e que prometeste ser o primeiro de muitos que estariam por vir, até ao fim. Sei-lhes a cor da capa, a mistura de nomes, o tamanho da letra e o número de páginas. Mas não foi por isso.
Foi quando me fui certificar se haveria neles algo nosso que, de tão íntimo, seria violador revelar numa estante de uma sala. E, quando os abri, caíram do seu interior as cartas que me escreveste. Foi então aí, nelas e por causa delas. Nenhuma culpa minha ou tua, mas delas, as tuas cartas. Pego-as devagar, provas essenciais para afirmar a tua existência, realidade da irrealidade com que me afiguras ainda por vezes. Sento-me na cama e leio-as, inundada de ternura. Nelas, a tua caligrafia da primária, cuidada e certa, o "a" perfeitamente redondo e com uma perninha auxiliar para não tombar, todas as voltas nos "b" e a ondulação no "v". Inscrições com caneta colorida, corações vermelhos e sóis dourados, autocolantes nas pontas das folhas, formatos particulares e a tua atenção à importância do detalhe que sempre me encantou, como quando te declaraste usando guaches pintados nas mãos ou quando colaste em palitos dezenas de pequenos corações inflamados de paixão.
À distância de uma eternidade, consigo imaginar-te na escola, joelhos esfolados como sempre, um sorriso inesgotável e fresco enquanto mandas papelinhos à tua melhor amiga em vez de prestares atenção à senhora professora. A tua escrita pueril e incomum numa mulher da tua idade e aí a razão inesperada para toda a violência do que antes era. Foi por seres assim, por, quando todos querem ser tudo, a ti não te incomodar o circo da política, o desespero das filosofias ou o exagero dos escritores, por tudo o que não vier de ti te ser alheio, como opção. Uma alma de menina traquinas, que cola-o-teu-desenho-no-meu, usa vestidos curtos e ri quando cai. Criança pequena em corpo de gente grande, e a vontade súbita de cuidar de ti, pegar-te na mão frágil e ir andar contigo de baloiço.
Tanta vida nos separa agora, meu amor. Só ficaram as tuas cartas e os livros que não vão para a estante da sala.
Foi quando me fui certificar se haveria neles algo nosso que, de tão íntimo, seria violador revelar numa estante de uma sala. E, quando os abri, caíram do seu interior as cartas que me escreveste. Foi então aí, nelas e por causa delas. Nenhuma culpa minha ou tua, mas delas, as tuas cartas. Pego-as devagar, provas essenciais para afirmar a tua existência, realidade da irrealidade com que me afiguras ainda por vezes. Sento-me na cama e leio-as, inundada de ternura. Nelas, a tua caligrafia da primária, cuidada e certa, o "a" perfeitamente redondo e com uma perninha auxiliar para não tombar, todas as voltas nos "b" e a ondulação no "v". Inscrições com caneta colorida, corações vermelhos e sóis dourados, autocolantes nas pontas das folhas, formatos particulares e a tua atenção à importância do detalhe que sempre me encantou, como quando te declaraste usando guaches pintados nas mãos ou quando colaste em palitos dezenas de pequenos corações inflamados de paixão.
À distância de uma eternidade, consigo imaginar-te na escola, joelhos esfolados como sempre, um sorriso inesgotável e fresco enquanto mandas papelinhos à tua melhor amiga em vez de prestares atenção à senhora professora. A tua escrita pueril e incomum numa mulher da tua idade e aí a razão inesperada para toda a violência do que antes era. Foi por seres assim, por, quando todos querem ser tudo, a ti não te incomodar o circo da política, o desespero das filosofias ou o exagero dos escritores, por tudo o que não vier de ti te ser alheio, como opção. Uma alma de menina traquinas, que cola-o-teu-desenho-no-meu, usa vestidos curtos e ri quando cai. Criança pequena em corpo de gente grande, e a vontade súbita de cuidar de ti, pegar-te na mão frágil e ir andar contigo de baloiço.
Tanta vida nos separa agora, meu amor. Só ficaram as tuas cartas e os livros que não vão para a estante da sala.
2 comentários:
O melhor que já li de ti. Estonteante e mesmo muito muito bem escrito. Não sei como sou a primeira a comenta-lo.
obra prima
Really?? "Estonteante"? "Obra-prima"? :p
Acho que já escrevi coisas melhores (e digo-o sem qualquer pretensão). :p
Deve ser do cunho auto-biográfico, que faz fluir mais facilmente. :)
Obrigada*
Enviar um comentário