Conjunto

Já não conseguia fazer mais nada senão estar. Ela não era, ela só estava. Os dias sucediam-se iguais e na televisão nada já capaz de lhe lembrar um dia diferente. Não era só o não ter trabalho, se fosse só isso!, era sobretudo ele, ele que se tinha ido embora e abandonado tudo o que se tinham prometido, que a abandonou a ela. Tudo tão abrupto, tudo tão recente e ainda a sangrar. Foi na semana anterior, quando ele fumou três cigarros seguidos enquanto dava o programa do Malato para depois lhe dizer, a ela, "apaixonei-me por outra mulher. vou viver com ela. desculpa-me." e fez as malas à pressa e partiu. Ela não conseguiu dizer-lhe na altura tudo o que a consumia por dentro, só conseguia chorar e gritar "não" e depois já era tarde. Telemóveis desligados, paradeiros desconhecidos, pistas que não davam a lugar nenhum, ninguém a saber de nada, tarde. Nessa semana não saiu de casa - sair para onde e para quê? - e, quando a mãe lhe ligou dias mais tarde para saber da sua vida de recém-casada (ainda liga todas as semanas), chamou a si todas as forças que pensava não existirem mais, colocou a sua voz mais segura e mentiu, dizendo que estava tudo bem. Falta a coragem para acabar com o sonho e para confessar que fracassou.

Hoje o telemóvel tocou, com número anónimo. O coração saltar-lhe-ia do peito se não houvesse carne a encarcerá-lo. Finalmente, finalmente. E ela agarrou o telemóvel rezando para que fosse ele. Mas era só a menina do Banco e a desilusão de não ser ele, ainda. A menina do Banco queria vender-lhe uma dessas contas ordenado e ela até gostava de dizer que sim mas estava desempregada. Escutou até ao fim, sempre pensando nele, na semana passada e em todas em que ela poderia ter visto os sinais e não viu. Quando a menina do Banco perguntou se ela tinha dúvidas ou questões, ela desistiu da sua voz controlada de quem aguenta, e perguntou chorando: se eu me separar...(hesitou e, depois, mais baixo) o que acontece ao apartamento?

Sem comentários: