Delação

O passado já tão longe (!) e a carne viva a pulsar debaixo da pele, numa ferida fechada que não sangra mas há, quando me revelas que descobriste quem, finalmente. Tanto tempo a tentar decifrar esse enigma, suspeitas sem provas, pistas sem conjugação, a nulidade de uma hipótese que rapidamente deixou de importar ante o seu resultado devastador em nós. E, só agora, consumado tudo e sem salvação, se torna evidente e óbvio. Porquê? Mil vezes porquê.

E, num instante de fúria longamente contida, apetece-me destruir quem tão árdua e cobardemente se deu ao trabalho de destruir, não faças aos outros para que não volte para ti. Afogar, sufocar, esganar, todas as formas possíveis de lentamente apagar uma forma doente da Criação. Torno-me por momentos assassina em potência, imune a remorsos e impiedosa para com palavras de arrependimento e choro em pranto. Mas até a morte tem de ser merecida, por isso ainda não.

A tua bondade sempre foi mais visível do que a minha, por isso, apenas consegues sentir dó por pessoas assim, instáveis e atormentadas, egoístas e pouco escrupulosas, que não medem os meios para atingir os fins que procuram. Não me aches cruel por escrever isto. Não posso ignorar tudo o que sofremos naquele fim antecipado do qual éramos apenas vítimas e que não conseguimos evitar. Não posso aceitar sem ser com indignação e raiva que a mesma pessoa tenha agora o descaramento de te submeter de novo a esse terrorismo psicológico, indiferente aos danos que causou já antes, insistindo numa obsessão psicopata de posse. Perdeste tanto por isso, meu amor, que às vezes quero assumir todas as culpas só para que tenhas a certeza que nada foi em vão e que tudo vais recuperar.

Muito embora queira absolver-me na fatalidade e assim culpar algo que está fora de mim, sei que não foi por causa disso. Mas a adivinhar-nos um fim, diria que começou aí, nesse gesto de asco para o qual ninguém estava preparado. E depois a minha petrificação no medo e na impotência, querer resgatar-te desse negrume em que os dias se tornaram e não saber como. Devia ter ido mal me informaste, largar tudo mas nunca te largar a mão, poder estar do teu lado para te abraçar e dizer que ia correr tudo bem porque nos bastávamos, mas a minha cobardia não o permitiu e só me restou esperar. O fim. Sei que não foi por causa disso mas não duvido que contribuiu, não me tentes convencer do contrário. Mas basta de ses.

Não vou permitir que tudo volte de novo, o pânico, a preocupação e o medo. Porque tu não mereces isso e porque, egoísta também nas minhas justificações, não quero ser testemunha da diferença da sua atitude para contigo, que sei corajosa, em comparação com a minha, que foi cobarde - a comparação é subcutânea e inconfessável, perdoa-me. Desta vez vai ser diferente, garanto-te. Agora segura a minha mão na tua, desta vez não te largo a mão.

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