Parecenças

Tanto para te falar, a vida toda a nascer em mim para embater violenta na impossibilidade absurda de ti, e como dói. Saber que nunca, nunca mais e a inevitabilidade anunciada nisso tudo, nós sabíamo-lo mas preferimos ignorar e tão tarde já. Quero falar-te da Joana, só recentemente me apercebi, não entendo ainda como só agora me lembrei, a ferrugenta memória indomável que se prende em pormenores imprevistos, aqueles que na altura nem notaste e que agora despertam em vertigem na esperança de um novo génesis onde caibam inteiros. A vida tão lá atrás, um tempo tão distante ainda antes de ti, e que por isso inexistente. O mundo só começou mais tarde, quando te pude enfim enlaçar a cintura e ver que tinhas a alma escondida dentro dos olhos e por isso essa cor que não há em mais nenhum paraíso, única, exclusiva e tua. Ter um mapa para não me perder, novamente, no teu olhar, como se fosse assim, simples e fácil. Antes de ti era rascunho, projecto, quimera e o abismo. E tu vieste, beijaste-me a boca em sofreguidão e vontade e tornaste-me real, sopro de vida eterna.

Mas dizia-te eu da Joana. Foi noutra vida, há sempre muitas vidas numa vida e às tantas confundem-se todas e depois já não sabes quem és. Alguma vez soubeste? Que mania tens tu de quereres saber. Falava-te pois da Joana, deixar-me por fim de voltas quando se pode chegar em linha recta, o problema sempre foi o dos desvios e atalhos, demorar na instância de prolongar. Sabia que me lembrava alguém e foi só há dias, lembrei-me então. Era a Joana.

O mesmo cabelo livre e selvagem, os mesmos olhos grandes e a sua luz de desejo de infinito, o mesmo interesse genuíno no acto de criar, como se brotasse dela, como se necessidade, a mesma força e confiança que me intimida e fascina, como quando se olha enfeitiçado para o fogo, cuidado para não queimar. Deixava-lhe poemas de Pessoa debaixo da porta, subtis e de alento, quando a via chegar a casa com o olhar apagado de tristeza, e certa de que estaria já a dormir. Infantil e cobarde até na surpresa. E no dia seguinte ela sorria-me de manhã e nada tinha acontecido. Pois bem, é a Joana, mostrar-te uma fotografia, se a tivesse, e concordarias comigo. Tanta ironia, ter vivido com ela, tanto descaramento na parecença óbvia. E agora tu já sem nós mas ainda eu contigo e tu comigo, embora num espaço onde não posso ser. Outra vida, distante. Tão distante quanto tu. Mas ainda menos. Certamente menos.

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