O ateísmo de Saramago II

Acho que foi Lobo Antunes que disse que esse é um assunto que, de tão íntimo e pessoal, é ousadia perguntar sequer sobre ele. Mas, entre copos bem bebidos de sangria, falámos da minha fragilidade naquele pedido, ou do que ela percebeu como o meu medo de desilusão e a necessidade disfarçada e consequente de afastar de mim o cálice, questionámos pais que olham à distância sem interferirem, como ausentes, a força do livre arbítrio nas escolhas do Homem, discutimos as cegueiras convictas na sua presunção arrogante de saber. Bem-aventurados afinal aqueles que percebem que é também o álcool que faz o mundo girar.

Somos pequenos demais, insignificantes demais, pretensiosos demais, e humanos, sobretudo humanos. E, por isso, uma tendência intrigante e esperançosa de que a vida tem que, obrigatoriamente, carregar em si um sentido que a transcenda, como fuga ao desespero, como lógica necessária capaz de caber, enquadrada e perfeita, nos nossos moldes. Não conseguimos aguentar em nós todo o deslumbramento. E daí a fé.

Não desprezo a fé, qualquer que ela seja, mas considerando até o seu próprio conceito, recuso-me a tomá-la como evidência ou único possível caminho e irritam-me solenemente aqueles que têm discursos baseados no proselitismo e contentamento com o regresso dos filhos pródigos, num mundo dividido em certos e errados, ignorantes e iluminados, fanáticos e coitados, bons e maus, crentes e não-crentes, nós e os outros.

Não consigo aceitar uma dor ininteligível, não sei entender uma suposta omnipotência que tão pouco pode ou um pai afinal tão despreocupado com os seus filhos. Gostava de compreender mas não compreendo, procuro mas não encontro, tento mas tudo é inútil. Não professo então um ateísmo caprichoso e orgulhoso de si, mas apenas a resignação de não poder aliviar o peso de existir na crença, ilusão segura. Como em Saramago ou Vergílio Ferreira, se associações são pertinentes, a busca está em não o dizer - num a revolta e a denúncia, noutro o desalento de estar só e, em ambos, uma religiosidade entranhada como golpe final, impiedoso e irónico do próprio que assim se manifesta e grita em cada palavra: existo.

O perigo de qualquer definição é a limitação mas, atrevendo-me a isso, diria que sou uma ateia numa busca religiosa e obvia e absolutamente pagã.

Não tenho certezas de nada e admito as possibilidades em aberto, porém, prefiro tentar compreender para poder acreditar ao invés de acreditar para tentar compreender. Prefiro estar numa permanente dúvida a acreditar numa falsa certeza. Amo a dúvida como quem ama a verdade.