Os olhos pequenos demais para verem uma coisa tão grande*

Existe sempre um pudor infantil para falar claramente de ti, como quando a Joana foi lá a casa e eu corri antes dela porque não quis que visse as minhas botas de borracha lamacentas. À conta da brevidade com que encerro a nossa história, dos curtos dias que cruamente se poderiam contar pelos dedos e muito por causa dos meios ditos modernos que nos serviram, sei que te verão sempre como um capricho a que não resisti, loucura maior de quem quer ser diferente, leviandade minha, precipitação minha, história passageira que teimo em fazer maior, devaneio meu. Sei que não dizem mas está lá, palpável e a embater sonoramente na minha ideia demasiado perfeita de ti. Por isso, sabendo que não entendem, não protesto, não corrijo - conto-te de ti para comigo.

Às vezes estamos perante algo tão grande e tão perto estamos que, mesmo olhando para o alto, não conseguimos com a vista alcançar-lhe o topo, a concentração em detalhes particulares desfoca a atenção para o todo. Houve um momento em que não te vi, absorta no tamanho da tua realidade. Estava-te tão próxima e perdida em cada detalhe, que não consegui tomar para mim a certeza de existires toda. Hoje, sem a venda obscura do encantamento (como tinhas razão, quando usaste esta palavra!) e à distância de um mundo, sei que te vejo. Inteira na tua imensidão de ser, agora te reconheço e sei e redescubro o momento que te fez presença na minha vida, a tua alegre insconsciência e o sorriso de menina perversa. Vives.

Uma história que se poderia repetir e de que recordo nitidamente as dúvidas, não erres desta vez, que tenhas aprendido. Oiço-te e volto para dentro dessa história e sei-lhe as dores e os medos, não estou lá e já estou, contas de agora e revejo o antes, contas dos gestos e sei que por causa das palavras, contas a distância e a cedência e eu sei tudo isso tão bem, estou de fora e sinto-me dentro, é estranho mas não nos importamos, tu precisas e eu exploro, psicóloga que manipuladoramente questiona para descobrir respostas às suas perguntas, não as tuas mas as minhas.

Saio com a paz segura de quem nunca se enganou e com uma ignorante certeza de ter conhecido o (teu) amor. As perguntas importantes são aquelas que não se fazem.

*nome de um dos capítulos d'A Máquina de Fazer Espanhóis

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