O que em nós se modifica

É impossível, nunca se recomeça do zero, um esforço que tentas em vão vencer mas que é impossível. Há sempre demasiadas feridas, aquelas que tu dizes que estão cicatrizadas e nunca estão, mas tu tentas muito convencer-te que sim mesmo sem saber bem porquê. Há muita bagagem e muita história, um peso que tu já não queres aguentar porque já aguentaste tudo antes. Há o antes, sobretudo o antes, sobre tudo o antes, o reflexo que sempre vais enfrentar, onde estiveste e onde estás e um imenso intervalo escuro pelo meio. Continuas a ter medo do escuro. E não queres contar a mais ninguém, não queres ter de repetir. As mesmas palavras ou a ausência delas, as pausas sempre colocadas no final daquela frase, aquela que te dói, as reticências que te povoam o discurso e não querias que notassem. Não precisam de saber. Perdeste a paciência e preferes pular sobre tudo isso, como se nunca tivesse acontecido, talvez nunca tenha acontecido, um sonho sonhado à maneira do Kafka.

Tentas mas notas que já não consegues, há o abismo do continuar e a medida do após a aniquilar-te suave e subtilmente, mortes doces a cobrirem as palavras leais. Palavras parideiras que arrastam outras palavras, e já não bastam, parecem nunca bastar agora. Porque agora estás mais sensível e mais susceptível, há mais pressupostos e acreditas menos. Precisas de mais incentivos e de mais provas e tudo é pessoal e tudo pode ser um atentado. Mesmo que inofensivo, mesmo que uma necessidade ou até só aquela saudade. Nós que se enrolam e desenrolam até ficares tu enrolada e sem fuga possível. O problema nunca és só tu. Não há o problema, és tu quem o vê, maldição que te calhou em sorte. Criaste filtros de que não te dás conta, não te permistes ver a plenitude do todo, ainda duvidas, ainda complicas. És ainda o cego no quarto escuro à procura do gato preto que não está lá. Tudo se modificou e não podes recomeçar do zero.

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