A confusão naquela cabeça e a embrulhada daquela relação

"Aquela relação com Deus deixara de funcionar há muito. Eu insistia, dava-Lhe novas oportunidades e o cabrão só me fodia. Para quem nunca Lhe tinha feito mal, eu era muito mal tratado. É certo que nem sempre me lembrava d'Ele. E quando os dias corriam bem nem sequer Lhe falava. O que não Lhe devia fazer muita mossa, com tantos pedidos que devia ter sempre a entrar.

Mas Ele era vingativo. Se uma pessoa não Lhe ligava, tomava nota e na próxima entalava um gajo ainda mais. Eu não precisava daquilo. Sozinho já conseguia arranjar problemas suficientes para ainda ter de estar a levar com extras, filhos de maus fígados. Era um mimado, era o que era. Jurei acabar ali mesmo, naquele segundo, com qualquer crença. Acabava-Lhe com a raça. Não se falava mais nisso e muito menos com Ele ou sobre Ele. Não existindo, não me poderia fazer mal.

Quis dizer à Carla que tinha acabado de matar Deus, que me custara muito, mas que era o melhor para todos. Até mesmo para Ele, que passava a ter menos com que se chatear. (O problema era mesmo esse, Ele nunca queria saber, não se preocupava com nada.) Como vivia da fama e da fartura, achava que era mais do que os outros e baldava-se. No entanto, aquilo que Ele não sabia era que se uma pessoa não acreditasse n'Ele, Ele deixava de ser quem era. E aí é que eu queria ver o que é que fazia à vidinha. Aí Ele é que teria de vir pedir rezas. Sem crentes o que é que Ele ia fazer aos dias? Vivia de quê? Sem ofertas, nem igrejas onde pernoitar. Estava entalado, era o que era. Se calhar até ia parar ao meio da rua. Sempre habituadinho a que Lhe dessem tudo, queria ver como é que se desenrascaria sozinho.
(...)

Por outro lado, a vida sem Deus ia ser mais difícil: acabavam-se os desejos divinos e as desgraças que uma pessoa não conseguia perceber. No fim, cada um a tomar conta da sua vida era muito mais justo.(...)
As pessoas nem sempre percebiam o que era melhor para elas. Ia demorar até que vissem que a história de Deus estava um bocadinho mal contada. Coisas simples, mas que eram de desconfiar, como a conversa em que Ele achava que era o Pai e o Filho ao mesmo tempo. Um pequeno sinal da confusão que devia ir naquela cabeça. E da embrulhada daquela relação."

Ricardo Adolfo, Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas

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