Na terra: Fendt

"Insultei-me várias vezes por nunca ter aprendido a fazer ligações directas com o pessoal da terra que andava aos tractores. Erros que se cometem quando se é novo e não se percebe que é preciso aprender de tudo. Prometi-me levar o miúdo à terra um dia e ensinar-lhe a matar um porco, varejar azeitonas, pegar fogo à mata, roubar vinho, roubar galinhas, encontrar o caminho para casa embriagado, sem luzes, levado pelo cheiro das cabras, ganhar à sueca, fazer fisgas, fugir à guarda, não comer fruta do chão, reconhecer o caminho das pedras no rio, sacar moças nos bailes, mudar o óleo, tirar água do poço e uma bezerra de dentro da barriga da mãe, levar uma galheta sem chorar nem baixar os olhos, fazer corridas de tractor, baldar-se à missa sem dar nas vistas, aliviar a caixa das esmolas e as hóstias do sacristão, ir aos caracóis e às amoras, marcar terras, tudo aquilo que faria dele um homem melhor, mas preparado. Coisas que só se aprendiam na terra, nos meses eternos de Verão."

Ricardo Adolfo, Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas

(ou às lapas, ou a bucha e as botas de borracha, puxar mangueiras e pesar bróculos, preparar quermesses ao som do Oceano Pacífico, ir aos figos e às pêras, cantar no coro e ler a Segunda Leitura. Aquele cansaço feliz. E lembrar-me de ti quase comovido no milagre da vida que foi a égua dar à luz, ou o teu entusiasmo quando te falei do Fendt. Amei-te muito nesse dia, a pensar que tu serias esse homem melhor e preparado meu. Hoje, na lonjura dos dias, qualquer lembrança de ti cabe apenas diluída nos meses eternos de Verão, quando a terra sabe a terra. 

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