Unplugged

Tens emprego, um tecto a que podes chamar teu desde que não te distraias com nenhum mês de renda, um portátil e um carro aceitável, reuniões durante a semana, saídas ao fim-de-semana, tão injusta esta proporção, e tiras férias em Agosto e passas o Natal com os teus pais em Dezembro. Tens uma vida normal e és tão orgulhoso nisso. Estás enquadrado, normalizado, encaixado, limitado e tens uma porra de um orgulho nisso. Viva para ti que ainda tinhas um lugarzinho à tua espera no rebanho da igualdade, fraternidade e perfeição (a liberdade é só uma maluca, como diz o Palma, não ligues ao que te grita) e conquistaste-o por mérito próprio, seguidor perfeito de doutrinas e outras religiões.

Tens pressa. Estás sempre cheio de pressa (mas para chegar aonde?). Tens sempre que ir a algum lado (aonde vai afinal toda a gente quando diz que tem de ir?). Corres muito. Corres demais. Não corras tanto, tens pressa para quê? Deixaste de ter sonhos. Em vez disso tens a cabeça entupida de projectos – para o trabalho, para um texto, para as férias e para a vida em geral. Sabias que é cientificamente provado que a maioria dos projectos falha? Ainda assim, planeias demais e preocupas-te demais. Respondes com “vai-se andando” e com “é a vida” à quietude dos dias que se consomem lentos. Jogas no Euromilhões religiosamente todas as semanas, confiante que bastaria isso. Estás submerso em frases feitas, ideias feitas, histórias que te fazem. E não questionas. Estás a todo o momento a provar(-te) e nunca basta. Fear me or revere me but please think I’m special.

O inesperado passou a ser um obstáculo à certeza que tu gostas de ter e o imprevisível é só quando sais a horas do trabalho. Viste aquele cartaz da Sumol sobre o ser original e tentaste convencer-te que aquilo é para quem não cresceu e ainda não conhece nada do mundo. Mas há dias em que te olhas no espelho e acreditas que podes recomeçar de novo. Once upon a time. Tem a coragem de acreditar. Ousa fazê-lo. Segura-te ao que puderes, não os oiças, eles não sabem nada de ti e tu não sabes nada deles. Deixa que te estranhem, que questionem, que suspeitem e, mesmo tentando, não compreendam. Ainda vais a tempo de te tornar em quem és. Irrepetível. Vive sem rede, vive em directo. Unplugged. No final, não há esse tempo que te escapa em correria. No final, és só tu contigo. Por isso vai ver-te ao espelho. E não regresses.

3 comentários:

JAM disse...

Wow....gosto tanto quando escreves assim....fazes lembrar um certo gajo que quando se passa escreve coisas similares...mas com asneiras...acho que se chama JAM... :D
Claro que tu escreves muito melhor, mas ainda assim....

"E não questionas."
É terrível quando vemos alguém que teima em não se questionar nem ao mundo ...
Enerva-me cá de uma maneira...
Ainda há dias fui chamado parvo por gostar de questionar a razão de todas as coisas.

Mas já dizia um dos maiores génios de sempre:
"The important thing is not to stop questioning. Curiosity has its own reason for existing. One cannot help but be in awe when he contemplates the mysteries of eternity, of life, of the marvelous structure of reality."

Desculpa comentar um texto tão pessoal, darling...

I disse...

Concordo com o comentário acima. És espectacular quando escreves assim (e de outras miniformas também!). Chegas ao cerne da questão, directamente, no tempo e no som de um estalo. Muito bom!

Marisa disse...

Obrigada a ambos. :) Mimam-me demais.

Às vezes precisamos desse estalo, não é?...Importa fazer o texto ganhar um sentido real, capaz de saltar do blog...essa é a parte difícil, mas obrigada.

JAM: Questiona sempre! E magnífica citação. (e não tens de pedir desculpa - as coisas mesmo pessoais não se contam, ou a contar, não autorizo comentários. Easy.)