The Last Station: amar demasiado a Humanidade


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Parecia o género de pessoas que amava tanto tanto a humanidade que quase se esquecia de amar o homem que estava ali ao lado. Pensa primeiro em mudar o mundo do que em mudar-se a si próprio. Queria doar em testamento os direitos da sua obra ao povo russo, desfazer-se das suas propriedades e deixava desaustinada a condessa Sophia, aquela que foi musa, mãe dos seus 13 filhos, que lhe decifrou e copiou 6 vezes as suas garatujas da Guerra e Paz e lhe dava conselhos do enredo: "A Natacha nunca diria tal coisa ao príncipe Andrei".
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Falamos do grande (assumimos a repetição do adjectivo) Tolstói mas na terceira etapa da sua vida. Já não era o jovem nobre que participou na Guerra da Crimeia e que cometia excessos, alvoroços e "ex-sexos" com prostitutas, orgias, jogo e muito vodka. Já não era também o pai de família, sublime escritor de alguns dos clássicos mais definitivos da literatura mundial. Agora ele está a chegar à última estação da sua vida: é um velho ideialista, cioso pela pureza, intolerante com os vícios depois de os ter cometido a todos. E nisto consiste a sua maior tragédia. A renegar a violência depois de a ter praticado na guerra e sobre os subalternos. A repugnar-lhe a carne, depois de passar por faustosos banquetes. A pregar a abstinência sexual, depois de ter tido 13 filhos (mais um, que se saiba, fora do casamento) e todo um historial de turbulências amorosas. A abdicar da riqueza depois de a ter usufruído durante a vida toda - e atenção que os padrões da nobreza russa não têm qualquer paralelo, em opulência e autoridade, com os da aristocracia ocidental. Este é outro Tolstói, de que se fala no livro e no filme. O Tolstói que já não se interessa por romances, mas tão idealista quanto incoerente, tão sentimentalista quanto naif, tão velho quanto confuso, cheio de conflitos existenciais, numa guerra (sem paz) interior. 

Ana Margarida de Carvalho, na Visão

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