The extra mile

É curioso como alguns pormenores, momentos que diríamos banais como tudo, nos permanecem na memória. Tu serás sempre a pessoa que estava comigo quando eu soube da morte do Saramago. Era ainda verão e seríamos felizes, eu estava a crescer, sentia os ventos da mudança - são sempre ventos, repara -, haveria de ser promovida e reconhecida, nem eu nem tu sabíamos do futuro desviado que depois foi. Eu esperava sempre o melhor das pessoas ou era uma optimista a pensar que as oportunidades são visíveis e por isso bem aproveitadas e, não variando, enganaram-me de novo nesse dia. Por essas alturas, geralmente às sextas-feiras, andava numa de ir almoçar ao frango da guia e, não variando, acreditei que era naquela sexta-feira que iam ser rápidos. É bem provável que, mesmo com o calor, tenha comido sopa e secretos. Não me lembro se pedi um guaraná. E tu estavas a almoçar comigo quando eu recebi uma mensagem no telemóvel e era o meu irmão, "o saramago morreu". E na memória, de uma ingratidão aleatória, sem medir a quem ou ao quê, tu ficaste a pessoa que estava comigo quando eu soube da morte do Saramago.

Nem sabia que me lias. É sempre esta situação estranha quando sei que alguém que me conhece na realidade me sabe mais do que sei, como se me apanhasses com a depilação por fazer, natural. Talvez eu não tenha sido a melhor pessoa. Lembro quando foste embora naquela noite, quando vieste e eu não te fui ver. As nossas pessoas não são as mesmas, embora tu sejas tu e eu seja eu. E falas de escrever o amor e eu quero dizer-te que isso não interessa para nada. Escrever interessa pouco e escrever o amor interessa para nada, anota. O que importa é viver ou, se quiseres, o que importa é viver o amor ou só o amor. E eu até posso ter estes laivos de loucura acidental e necessária, São Paulo, Oslo, o mundo todo, mas fui e vim. Tu foste e ficaste, pelo amor.

Agora nem sei de ti, se estás cá, se estás lá, sou felizmente desnaturada nessas coisas do espaço e do tempo, mas quando estiveres cá, haveremos de beber uma sangria um dia destes, ver cinema ao ar livre no miradouro de S. Pedro de Alcântara, talvez até falemos de amor.

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