Telerural (every day is Sunday).

É sempre o concreto o que nos agarra, o jeito como retoca o cabelo, a disposição conhecida das mãos sobre o colo, o modo como riem e gozam um com o outro como se todos os dias fossem Domingo e todas as disputas e falhas viessem ainda a tempo de ser remediadas, eu e ele que consentimos o mesmo sorriso pequenino porque sabemos de cor aquelas histórias. O avô diria que já começa o jazz.

Contam então de como se tornam cada vez mais um centro de reabilitação de ex-traficantes, pois que já diziam os outros que o trabalho liberta e aqui vai mais uma prova, são já dois e um quase promovido a braço esquerdo, pois que o direito já estava garantido de nascença e é assim natural a alegria de se ter um filho varão que segue com ambição as pisadas do pai e ainda por cima gosta realmente daquilo. Contam de como esse braço esquerdo teve a esperteza de guardar a faca dentro das botas de borracha e, tropeçando, espetou funda a faca, não no braço mas na perna esquerda. Ela recebe o telefonema, porque há sempre um telefonema, acorre para o levar para o hospital, e não consegue evitar rir disfarçadamente entre os doentes na sala de espera quando a enfermeira vem e pergunta alto quem é que está a acompanhar o senhor que levou uma navalhada. Depois há o nome que o vizinho pensa que é falso porque nunca imaginou que ela tivesse dois nomes, o que teria dado uma enorme aventura se o porteiro não conhecesse aquela mulher e não se soubesse já que não foi de facto uma navalhada mas uma faca espetada na perna, o que são dois conceitos que devem ser suficientemente inequívocos para não arranjar mais confusões. Já se sabe também que os vizinhos falam sempre demais.

Mas valha-nos aquela que, dois dias depois desta ocorrência, toca a campainha para agradecer. Não é todos os dias que duas vizinhas, habitantes da mesma aldeia, vão deixar os filhos à escola de manhã e no caminho de regresso à lide doméstica, um carro atrás do outro, decide uma bater violentamente contra o carro da outra, uma canzana perfeita. Considerando que o carro tinha vindo no dia anterior da oficina, poderia julgar-se que seria ainda cedo para tamanhas excitações, mas parece que os carros, tal como as pessoas, ligam pouco a este tipo de conselhos. Vai daí, dizem que o choque implicou um impacto de mais de 20 metros (embora eu, a uns bons quilómetros de casa, possa assegurar que foram uns 10) e que o cinto de segurança se rasgou do banco, o que não teve um resultado muito positivo para quem levou com ele e obrigou a cortarem a estrada nos dois sentidos, um carro para cada lado, e a garagem da vizinha da frente bloqueada. Não cheguei a apurar se a minha mãe ainda estava em robe quando desceu a correr as escadas e chamou o INEM mas podemos presumir que já estaria decentemente vestida pois sempre se deitou e levantou cedo, como as galinhas.

Na mesma semana deu-se o breve incidente do chefe de família, benfiquista mas a perceber mais da novela do que do Benfica, com os amendoins estragados, que o decoro não me permite contar, pelo que se terminou o relato com o facto do Martinho pai, não o filho, quase ter morrido quando, distraído, passou com o gingarelho, leia-se "motocultivador", por cima de um ninho de abelhas. Mas já está bem e mais experiente, nada de preocupações tardias que nada acrescentam a este episódio que passará de geração para geração, assim queira a vida.

O tempo vai bem e pelo menos por ali não houve as mesmas inundações que houve para o Norte, sorte das couves.

(há dias em que gosto particularmente da minha família).

Sem comentários: