Do referendo: to know her is to love her.

Quando o Isaltino Morais foi parar à prisão, a filha haveria de defender fervorosamente o pai perante as câmeras de televisão e o teu, sabendo dos temas que sempre vos afastaram - trabalho, pretos e paneleiros, direitos e deveres humanos e fiscais - haveria de te provocar perguntando se tu terias a mesma reacção, mesmo sabendo de antemão que não. Durante muito tempo haveria de ser essa a piada da família nos almoços seguintes, somente o tempo suficiente que dura qualquer escândalo nos telejornais. Depois, poderia ainda fazer-se notar o facto de tu não entenderes o papel do subsídio de férias e de natal, de achares que é sempre preferível contar a verdade e respeitar com obediência cega a vontade de quem é autoridade. Mesmo a história do teu pai a roubar papo-secos durante a madrugada em Coimbra e o juiz a dar-lhe razão contra todos pouco mudaria essa perspectiva, apesar de ter mudado seguramente a imagem que tinhas do teu pai, homem determinado nas acções mesmo que fraco nos argumentos como tu. Agora, estacionas no largo desobedecendo ao sinal, questionas a integridade de quem te interpela, ignoras recibos e recebimentos. Todas estas histórias que só encontram sentido e enquadramento na tua memória para atestar que talvez o tempo, que as pessoas tendem erroneamente a querer confundir com maturidade, tenha tornado branda a tua postura, mais incrédula a tua ética, menos firme a segurança do teu pensar, tão propício agora à periferia de outras experiências além da tua. Não que não saibas já distinguir o certo do errado ou o preto do branco mas, como ela russa da boca perfeita lhe dizia a ele americano dedicado, para nós foi sempre tudo cinzento.

Que chegasses tu tão consciente dos teus princípios, lógicas e regras e disposta a mudar o curso da vida por não desistires das tuas batalhas, com a capacidade de distinguir a natureza da questão da questão da natureza, haveria de ser sempre por isso algo extraordinariamente novo, senão desconcertante e assim assustador. E já se sabe que o que nos assusta é tantas vezes o que nos fascina. Nunca ninguém falou assim. Que tu conseguisses separar cada uma das cores do arco-íris e a clara da gema sem derramar uma hesitação, distinguir a verdade da tua verdade e o que é o interesse geral do interesse particular, seria por isso atingir a mestria da racionalidade que tanto ambicionas, pese embora as vantagens e desvantagens disso. Adianta pouco ter um coração racional se te satisfazer somente a mente. O que de mais puro tens em ti é um animal instintivo, recorda. 

Pensar-te geral elevava-te então no mesmo sentido com que evitava pensar-te particular, só para não cair na tentação de ouvir uma conclusão que não chegasses a dizer. E, todavia, seria também essa uma razão, já não sei se maior ou menor, para que fosses tu e querer que os meus me viessem de ti, aquela coisa mais fixe de se ouvir de alguém.

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