One lives in the hope of becoming a memory.

Apercebi-me hoje, com tristeza, que já não consigo lembrar-me do nome do meu bisavô materno. Ainda não poderia dizer com confiança que a vida é um círculo, aquela ideia peremptória de que velhice e infância seguem juntas, com a infância cada vez mais nítida e presente nos dias nublados da velhice, mas suspeito. E, por vezes, à força de querer ser futuro, parece-me que estou involuntariamente a antecipá-lo para um tempo que ainda não lhe pertence. É preciso acalmar então a vida, pôr as coisas de novo no seu lugar. Saber respirar, o mais importante.

Tenho a impressão de que condensei a minha infância toda na minha avó. Nem consigo imaginar o que estariam a fazer os meus pais pois a verdade é que, sobre esse tempo, só me lembro dela. A minha infância é a minha avó a levar-me pela mão a visitar os meus bisavós - fazendo uma distância que hoje me parece inconcebível fazer a pé - e o meu avô a fazer cruzes de canas e cordões para enterrar os pássaros, peixes, cães e gatos que me serviram de melhores amigos em algum momento. Por vezes também os dois, como quando foi Carnaval e saímos os três (quatro?) de máscaras horrendas e roupas estranhas, noite adentro, a assustar as pessoas do casal. Foi depois o meu avô que caiu, já com os copos, junto à pecuária? Haverei de perguntar à minha avó se ainda se lembra disso.

Se o homem da fruta viesse, aos Domingos à hora de almoço, leváva-nos com ele até à aldeia dos meus bisavós. Se não, íamos, eu e a minha avó, a pé por aí. Passávamos por caminhos, junto ao cemitério, e depois subíamos pelo meio das terras e regatos, a estrada principal a ver-se ao nosso lado, até chegarmos àquelas escadas que hoje já ninguém usa e que marcavam a entrada na aldeia dos meus bisavós e aquela onde a minha avó nasceu e morou até casar. Depois, fazíamos invariavelmente o mesmo percurso de visitas: a ti Maria Adelaide, a senhora do rosto mais doce que conheci; os meus bisavós, onde estava sempre mais gente em visita; o ti Mário, onde a televisão estava sempre sintonizada na RTP2, a passar o andebol; o ti Nando, para que a sua mulher louca pudesse uma vez mais desfiar a ladaínha do seu infortúnio e a vontade de se divorciar, ainda que nunca o tenha feito de facto até hoje.

Tenho a impressão de que o meu bisavô era um homem bom. Nós chegávamos e havia sempre comida sobre a mesa, amendoins, pevides e um bolo sempre pouco doce, devido aos diabetes da minha bisavó. A televisão a preto e branco estaria na RTP1, o majestoso relógio de parede faria soar mais uma hora, chegava a ti Júlia, e conversava-se sobre as novidades da região, sem muito detalhe ou apego. Quer dizer, conversavam eles. Depois a minha bisavó poderia estar a fazer renda de bilros, a mostrar um picotado novo que a vizinha lhe tinha arranjado depois de ver numa revista ou em Lisboa, e o meu bisavô haveria de me levar a ver como tinham crescido os porcos ou simplesmente a olhar a grande nespereira que tinham no quintal. A vida era tão simples nessa altura.

Não me lembro quando foi que deixei de os ver e a saber deles apenas pela minha avó. Provavelmente, quando cresci. Depois morreram, com mais ou menos lentidão, cada um na sua vez. Hoje lembrei-me deles por um qualquer estranho invocamento da memória mas já não consigo lembrar-me do nome do meu bisavô. Surge-me então este medo de estar a envelhecer fora do tempo ou de que a memória, sendo limitada e recebendo memórias novas, faça por esquecer outras, o que se chama de first-in-first-out, para quem estudou sobre isso. Tenho medo de esquecer a voz do meu avô. Tenho medo de um dia vir a esquecer a cor dos teus olhos.

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