Apagar quando ferver.

Poderíamos falar todos os dias e em todos evitar o amor. Contornávamo-lo rente, sim, mas nunca o atravessávamos de uma ponta a outra. Não falávamos de amor. Só se fosse mesmo necessário e, mesmo assim, nunca por esse nome. Tudo o que era do peito chegava-nos por metáforas e eufemismos, escutava-se entre o silêncio e entrelinhas. Porque um nome era particularizar o que é, na sua essência, infinito e o suficiente para acorrentar uma definição ou marcar uma pessoa para sempre. E se confundíssemos o nome, se lhe chamássemos outra coisa por engano e isso nunca mais saísse, como seria? Um nome era um luxo que dispensávamos, por isso. Além do mais, outra razão, tínhamos sido muito amadas e, parecendo que não, sabíamos então muito bem do que não falávamos.

Podíamos convencer-nos de inúmeras razões, as que servissem melhor ao tamanho dos nossos medos ou à temperatura dos dias, uns que exigem aconchego, outros a pele exposta ao sol. Por vezes, eu escolhia as razões mais práticas e utilitárias, outras, as que falavam de impossibilidade e inevitabilidade ou, se estivesse num daqueles momentos de serena revelação que vem das horas de catarse, as da liberdade e universalidade.

Acreditávamos que o amor podia ser tudo e estar em todas as coisas, até mesmo criar-se no seio da desgraça, nos locais mais inóspitos e inesperados. A sua condição sobrevivente e a sua omnipresença altiva ilibava-nos doutras responsabilidades, não era um problema que fosse nosso, não o gerámos, não o incentivámos, acontecia por aí e em qualquer canto, a qualquer um. Poderia ser só uma precipitação, uma solidão mais fácil de levar mas, se estava em todas as coisas, talvez também pudesse ser amor. Podíamos também contar assim. Falávamos de amor como se falássemos de deus.

Quando a razão está ainda adormecida sob o raiar da manhã e o calor se concentra nos nervos do corpo, quando me enlaça contra si e me agarra a mão, nunca falamos de amor.

Sem comentários: