O que fica (para a história).

Era verdade que aquela diferença a fascinava. Não era só verdade, aliás. Era por demais evidente. Mais ninguém escrevia verossímil como quem dizia verossímil, usando da mesma facilidade de quem respira, nenhuma outra pretensão senão aquela de respirar. Ou elucidar paradoxos ainda antes das oito da manhã, por exemplo. Havia nela algo criado para desconcertar a consciência e que não se ficava pelas palavras. As palavras eram em si somente um princípio. Eram aquelas perturbadoras singularidades dela que desafiavam a sua periclitante existência de pessoa geral, como uma claridade que apelasse por definição à inquietação, o seu caos ali tão a descoberto. Por isso ela dizia que nunca ninguém lhe falara assim e essa era a verdade, a evidente. Ela, por seu lado, sabia disso mas não lhe cabia acreditar. Há momentos em que acreditar não chega para mudar nada, outros em que não é de todo necessário. Talvez este fosse um desses momentos. 

O que a faz regressar, aquela diferença que a fascina, é algo muito distinto do que a faz ficar, porém. Vem pelo que as diferencia mas é pelo que se lhes assemelha que fica sempre, porque a familiariedade traz um conforto que só se poderia encontrar na dobra da pele. Seriam essas as coisas mais simples, persistir tambor, aquilo que existia no imediato do peito e sem lugar a outros truques e defesas. O riso alto, o choro solto ou as palmas das mãos na alegria, o grito na fragilidade do corpo, o desabafo, a mesma esperança nos dias, a mesma vontade de criar o mundo. Aquilo em que eram mais próximas de si e dos outros. Eram todos os gestos irreflectidos, expostos na superfície de todos os medos e desejos, aquilo que a fazia ficar. Ela vinha por uma estranha necessidade de ser mais mas ficava pelo mesmo imperativo da vontade, quando eram iguais. Vinha pelas grandezas mas ficava sempre pelas coisas pequenas, aqueles olhos grandes de dizer tudo, as covinhas que nascem no sorriso mais puro, a forma indecente como retoca o cabelo.

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