A vida podia ser outra coisa qualquer porque nem mil versões servem para contar uma história. A verdade, as omissões, os acidentes, os ocidentes, as contrariedades, as contradições, são episódios que se perdem entre os dedos de uma mão aberta. Aproxima-se o dia do livro, a feira do livro, e eu penso sempre que as páginas desta minha vida podiam ser outras. Parece que foi há tanto tempo mas foi ontem, parece que foi uma escolha mas foram tantas. Neste dia de sol, eu tanto podia ser mulher da terra, cortando a rama às cebolas, como podia ser executiva na capital, nome e renome num fato inteiro como manda o preceito. Quem sabe, professora da língua mais bonita, quem sabe, dona de casa atenta aos programas da tarde, enquanto os miúdos não chegam da escola, ele ainda no campo. Até preta de mares naufragados, até índia, até dona de tudo ou simplesmente ser ninguém. Tu podias ser a jovem promessa do País, atleta de alta competição mundo afora, artista de circo ou consolação num sítio distante de crianças risonhas, podias ter enveredado pelas coisas úteis e justas, ou entrado na anonimidade duma aldeia esquecida do mundo. Nesta tômbola de sortes, podia enumerá-las a todas sem a nenhuma ser fiel. Podíamos todos ser outra coisa. A vida acontece a cada instante e podemos todos ser outra coisa.
Podia a vida de duas pessoas nunca ter-se cruzado e permitido o tempo e o espaço que continuassem despercebidas, ilesas e sem adulterações. Houve porém um dia em que as conspirações se desfizeram e o mundo atracou todo na mesma circunstância de existirmos tu e eu. O extraordinário da vida encontra-se nas suas manifestações mais ordinárias. Estás, como ela disse na limpidez das palavras mais simples, na história da minha vida. É por isso que sei e não temo. Venha o que vier, levo-te dentro de mim, olharei por ti, porque hoje, pensando n'ontem, guardo a mesma certeza naquela vivenda que era virada para o mar. Porque um dia, não esqueço, trouxe todos os dias. Um dia, soubemo-nos cuidar.
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