O mundo distrai-nos da vida, a vida distrai-nos da morte,

Terás sido tu, ou a vida, quem me habituou mal. O mais provável é que tenhas sido tu. O mundo distrai-nos da vida, a vida distrai-nos da morte, e por vezes, esqueço-me da facilidade com que tudo pode acontecer. Morreste e ressuscitaste tantas vezes, em episódios que seriam sempre impossíveis, que habituei-me a achar-te imortal. Tu és imortal e ninguém poderia duvidar disso porque eu tenho provas em casa, relatórios e exames e diagnósticos e prognósticos. Quase deixei de saber preocupar-me contigo, porque passava a ser esse um esforço inútil de desnecessário.
 
Não é que gozes da morte mas sempre a olhaste de frente, como igual, uma mão que lava a outra e a balança de repente equilibrada, porque o tempo, o amor, a vida, são de dar e receber, e todos os dias se morre, todos os dias se nasce. Por isso, para ti, vida e morte não são inimigas ancestrais em lutas diárias pela conquista das almas cansadas, doentes, desprevenidas, bem-amadas, mas é aquela tão discutida questão da igualdade, a mesma que dança na boca dos diferentes, mas a falharem todos a ideia primeira e última, a fundamental, mas que tu já tinhas entendido, numa precocidade que ninguém soube adivinhar à avó, quando nasceste. Porque não se degladiam, afinal, em noites de trovoada, como diziam, mas são amigas, amantes, irmãs, iguais. A vida está dentro da morte como a morte está dentro da vida e não se pode dizer o nome duma sem invocar o nome da outra. Isto é o que tu sabes. Isto, o que tu sempre soubeste de antemão.
 
Talvez fosse por isso que não se encontra medo nos teus olhos, embora seja de supor que o guardes nalgum lugar escondido da vista, porventura, no mais fundo do peito. Nunca se ouviu o pranto na tua voz, queixume algum, e as tuas alegrias e as tuas dores, sempre as resolveste sozinha. Eu, mal-habituada e insensível, quase crente, obrigo-me por vezes a ignorar as coisas da lógica e continuo a defender a tua imortalidade. Mato a tristeza à nascença, esvazio pensamentos por um pequeno de paz e vendo-me à noite em vergonha às senhoras e senhores dos milagres, enquanto continuo a abençoar as maravilhas do corpo porque ela tem razão quando diz que a dor existe mas não se procura. E raramente, só raramente, tenho este medo.