Ah rapazinho (dos incapazes de enconar a vida)

Como este tipo é real, como este tipo é tranquilizadoramente real, pensou, até no hálito espesso de bagaço, até na vulgaridade obsequiosa das feições: um homem concreto, verdadeiro, sólido, ancorado no mundo lógico dos impostos, das multas por estacionamento proibido, das costeletas à salsicheiro e dos pequenos ódios conjugais. Um homem como os homens e as mulheres da Cervejaria Trindade, verifiquei, as mulheres e os homens frustrados e azedos da Cervejaria Trindade na noite em que conheci o escritor Luiz Pacheco. Eu estava encostado ao balcão com o Zé Manel, a ouvi-lo falar da tristeza, da solidão, da perplexidade da sua vida, no interior daquela enorme piscina de azulejos povoada de vozes, de tilintar de copos, de roçar de tecidos, era em março e as pessoas mergulhavam o nariz na espuma da cerveja como os cavalos na praia, uma nuvem de fumo pairava sobre as nucas de cera, demasiado brancas, das pessoas, as feições de estearina e os cabelos suados das pessoas, e vai na volta o escritor Luiz Pacheco entrou, com dois sacos de plástico repletos de jornais nos punhos, um boné à Lénine na cabeça, os olhos protuberantes de tartaruga magra atrás dos óculos que os impediam de tombar no chão num ruidozinho de louça. Vinha perdido de bêbado e as mulheres e os homens frustrados e azedos da Cervejaria Trindade, as mulheres e os homens sem talento da Cervejaria Trindade troçavam dele, remexiam-lhe nos sacos, tiravam-lhe o boné, puxavam-lhe as abas da gabardina enodoada, riam-se-lhe nas costas o azedume de leite podre da inveja ou apertavam-lhe a mão como se aperta a mão aos augustos no circo, num misto estranho de condescendência e de desprezo.

- Caralho – pedi eu ao Zé Manel -, pela tua saúde tira o velho das unhas destes cornos. São os netos dos cabrões que jogavam pedras no Rato ao Gomes Leal, são os impotentes que se queixam de que neste país só se faz merda e que quando aparece alguém que não faz merda desatam a rosnar de fúria e de ciúme diante da tesão alheia por sentirem o trapo murcho nas ceroulas, por não serem capazes, por não serem definitivamente capazes de enconar a vida.

- Este é o António Lobo Antunes – disse o Zé Manel na sua voz afectuosa e doce que transformava as palavras em ternos bichos de feltro. Trazia Le Monde consigo como os tipos do século XIX as bengalas de castão de prata, e eu pensava Le Monde é a gravata dele ao olhar-lhe a roupa lançada com descuido sobre o corpo pequeno, a pulseira de cabedal, o cabelo escorrido sobre a gola da camisa. O escritor Luiz Pacheco oscilou ligeiramente nas pernas inseguras: o seu orgulho pungente, a sua insuportável ironia, reduziam os pénis dos impotentes a engelhadas coisinhas moles de mijar, enrolas nas calças numa vergonha de lombrigas. Uma farripa descolorida oscilava como uma pluma contra os azulejos da parede. Deitou a gabardine para trás, desembaraçou-se dos sacos e esbofeteou-me a cara, com ambas as palmas, num júbilo divertido:

- Ah rapazinho.

E éramos os três únicos sujeitos vivos naquele cemitério de tremoços. 

António Lobo Antunes, em Conhecimento do Inferno 
(cheguei tarde a Lobo Antunes mas dizem que todos os grandes amores se querem últimos.)

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