Partia sempre em vantagem em relação aos outros: conhecia a solidão. Contudo, ao contrário dos outros, não fazia dela a sua desgraça, não a bradava ou amaldiçoava. Estabelecera com ela uma espécie de entendimento mútuo, estranhos que se acostumaram um ao outro ao ponto de quase se poder chamar a essa comunhão de rotinas uma amizade, um pouco como as pessoas que se encontram todos os dias no primeiro autocarro da manhã e se perguntam onde estará ou o que aconteceu ao senhor de bigode que invariavelmente se senta no segundo banco junto à porta traseira, do lado da janela, que não veio hoje.
Não via a solidão como aquele mal-estar que os outros anunciavam ou como um problema a resolver. Era-lhe natural como o ar, imperceptível mas, sempre presente. Reconhecia-lhe até um certo valor. Era preciso saber respirá-la com o devido mérito, apreciá-la como se faz às coisas raras, gato passeando-se entre as gentes. Vivia de bem com a sua solidão e desprezava aqueles que procuravam combatê-la a todo o custo, como se fosse uma praga de que houvesse de livrarmo-nos.
Há por aí quem fale do amor como um acto de preencher vazios, porque "ninguém gosta de ficar sozinho", ouvi ontem na televisão. Falam do amor como um objectivo, como se o amor tivesse utilidade, imaginem. Procuram um amor útil, um amor tapa-buracos, que lhes acabe com a solidão e outras falhas e lacunas. Era estes que rejeitava. Ditava-lhe a razão e a experiência que o amor, de nada faz as vezes. Porque o amor não substitui, adiciona, não completa, sobeja, não é metade se é o todo. São duas solidões que se cuidam e respeitam, como ele escreveu. Duas sombras que se conhecem bem, digo.
Amo-lhe a sombra como se a amasse a ela.
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