Não existem palavras. Enquanto os números iam aumentando, dezoito, trinta, quarenta, cinquenta, só nos restava o vazio da perplexidade. Estávamos sem palavras, dizíamos todos. Hoje, ainda. Por vezes, escrever é só um absurdo necessário de inútil com que expiamos a dor para que não nos engula inteira. Isto não são palavras. Não as há. É somente um murmúrio, uma ausência que ficou.
Seria bom que pudéssemos entender o silêncio. Talvez respeitá-lo um bocadinho. Na morte, como na vida, tudo tem o seu momento. Ainda a cinza não se quedou, os mortos se choraram, e vamos já todos apressados em busca de culpas, de preferência com demissões imediatas e um pedido de desculpas, porque não merecíamos isto. O desespero é ingrato e bipolar. Há quem esteja a fazer tudo o que pode mas, alto lá, que não se diga que se fez tudo o que se pôde. Conseguimos ser solidários mas também cruéis. Porque a quem é pequeno, qualquer um parece grande, convertemos homens em heróis e trocamos de bom grado a nossa indiferença pelo respeito nos dias bons e a crítica nos restantes. Que se abrace o abraço mas, calma, que o afecto não salva ninguém. Estamos juntos, sim, mas não é juntinhos e não é com todos, que há por aí muitos presos à boa vida para limpar matas. Os jornais, atentos, inflamam tudo. Já não basta informar, é preciso dar motivos ao povo para que se indigne ou, a não ser possível, ao menos que sirva para os likes e partilhas, esforcemos-nos todos por encontrar a história mais triste, quem perdeu mais gente e, do nosso poleiro, façamos as perguntas mais descabidas, esperemos pelo choro, um gritinho de comoção aqui para a câmara se faz favor, e demos graças por não estarmos na pele daqueles pobres coitados.
Não concebemos perguntas sem resposta. Na tragédia só há inexplicável, porém. Somos humanos, filhos de deuses, os senhores da terra. Nada disto faz sentido, o inferno sendo afinal aqui e nós tão seguros e descansados de que se situava num outro qualquer lugar, não dentro mas longe de nós. Todos os dias morrem pessoas no mundo mas, como olhar aquela avó, aquele pai, aquele namorado, vizinhos, familiares, sem que morramos nós também? Sem que pensemos nos carros, no fumo, no sufoco? Um a dizer que ‘podíamos ter morrido, devíamos ter morrido’, ela que não pode aceitar que a ordem da vida se inverta assim, ir ao funeral dum neto, a outra gritando em aflição ‘ai, a minha casa’ e à segunda vez, mais alto, levando-me sempre consigo, ‘ai, a minha casa’ e as minhas mãos em pressa à boca.
Não é possível tomar as dores dos outros mas é possível reconhecer nelas as nossas. Só não é possível explicar. Não há palavras para isso. Não há metáforas para o fogo. Que pudéssemos então ao menos calar, só um bocadinho.
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