Irritas-me. Consegues irritar-me imensamente. Solenemente, como se diz. Por vezes irritas-me tanto que só não te mando à merda porque não consigo. Irrita-me que sejas assim independente, sem precisar de nada nem de ninguém e irrita-me ainda mais a hipótese de que me conseguirias esquecer num sopro e, impassível, continuar com o impossível da vida. Irrita-me que tenhas sempre razão, que nos restaurantes escolhas sempre a opção certa e que, em segundos, me desarmes os argumentos. Se calhar estar de mal-humor, irrita-me a ironia socrática com que ocasionalmente me respondes, nunca fora de tom, quase merecida. Irritas-me quando pedes desculpa e irritas-me quando não pedes desculpa, numa arritmia que por vezes me comove e noutras me exaspera, um tempo fora de mão. Irrita-me a tua lealdade e a tua dedicação, sobretudo quando colidem com a tua (a nossa) disponibilidade. Irrita-me que te coloques sempre em primeiro plano, quando e como queres, e irrita-me que te conheças tão bem, eu tão mal. Irrita-me que nada te deslumbre e nada te perturbe, que leves os dias leves. Irritas-me quando não cedes. Irrita-me quando não me contas tudo e, paragem abrupta, é preciso puxar, qual linha do novelo, o passo seguinte. Ou, pelo contrário, quando estás tão enervada com um assunto e não me ouves a mim. Quando te procuro a palavra e me retornas o silêncio, ou que me ofereças a brevidade de um sorriso quando te espero um esgar de sentimento. Acima de tudo, irrita-me nunca conseguir fugir ao límpido dos teus olhos. Paradoxalmente, não trocaria nenhuma destas irritações. Aliás, se pudesse, isto seria o que não hesitaria passar aos filhos. Isto seria tudo o que queria nos meus filhos.
Irrita-me gostar de ti. Irrita-me, especialmente, gostar de ti como gosto, neste acto sem nome e que não é muito ou pouco, é só gostar de ti. Uma coisa que me ocupa toda e que não se esgota pelo sexo ou pela presença, é uma coisa da vida. Gosto de ti como quem respira. Já sem pensar muito nisso.
Um dia, ainda as cerejeiras de sermos davam flor e os dias eram promessas, ligaste-me a chorar. Era sábado de manhã e tu não te lembras. Contam-se pelos dedos da mão as vezes que te vi chorar, as mesmas em que te falhei. Em todas, soube que era sério. Estavas fraca. Não, estavas cansada, esgotada, derrotada. Não aguentavas a ideia de ter de recomeçar do zero e querias desistir. Era sábado de manhã e eu tinha acordado bem-disposta. Entendia-te, ou julgava entender-te, e não te conseguia ver assim. Trocei de ti. Falei-te alto. Que dissesses tudo o que tinhas a dizer e não mudaria nada. Choravas e rias ao mesmo tempo e acredito que, se estivesse na tua frente, haverias de me ter dado murros no peito como acontece nos filmes. Choravas e rias e disseste com força “tu irritas-me”. Não me recordo bem mas é até provável que tenhas acrescentado tanto, “tu irritas-me tanto!”. As tuas palavras eram só fogo e verdade.
Nesse dia amei-te mais. Foi quando percebi, num momento de clarividência, que estávamos em algo que era real. Só é real quando duas pessoas sabem irritar-se, velho casal de casmurros que ainda se irritam um ao outro. Foi também quando entendi que o amor só funciona em regime tudo incluído. Cama e pequeno-almoço é apenas propício a curtas estadias. Mas, mais importante, foi nesse dia também que reparei o quão fácil é atravessar a fronteira entre dois sentimentos, num momento está-se num, no seguinte, já no outro. Quando penso em todas as margens que já atravessámos, meu amor, tudo me parece relativo e passageiro. E, se não atravessámos ainda o cabo da boa esperança, sei que foi só porque ainda não nos apareceu à frente.
Desta vez, irritaste-me de novo. Tanto, que me demorou dois dias a deitá-lo à folha. Há, admito, uma certa probabilidade de que seja um carinho mútuo e de que, desta vez, te tenha também eu irritado. A verdade é que sempre fui pródiga em confundir intenções com compromissos e a fazer contas em função do merecimento mais do que da matemática. Viste bem o que aconteceu quando tentámos calcular lucros, nunca confies na minha matemática, hei-de pensar que eu e tu somos nós. Faço do passado senha de atendimento prioritário e, escasso o tempo, planeio a felicidade como evento de sítio e hora marcada. É, vistas bem as coisas, legítimo que nos tenhamos irritado.
Quando leres isto, nada vais dizer. Talvez até te irrite que escreva coisas que não pertencem aqui. A minha palavra já não salva, já não basta mas, acredito ser ainda das poucas coisas que sei fazer bem e só por isso. Seguiremos como se nada fosse e isso vai irritar-me, já sei.
Depois conta como correu.
1 comentário:
Maravilhoso, simplesmente!
Enviar um comentário