Coisas de que não me quero esquecer ou Remembering is never innocent.

A ti Maria Adelaide e o caminho a pé até à Coimbrã, aquela passagem junto ao riacho que já não há e a escadaria que um dia foi infinita. A ti Deolinda e o ti Grilo, a ti Rosa e o ti Joquim, o rapaz, o sobrado e a janela do sobrado, o telheiro que ruiu o inverno passado. A desfolha do milho no calor da eira e a excitação de receber o homem da debulhadora. A figueira que se apropriou já de tudo e os pés de morango no Quintal. O pinhal e os ciganos, ir às pinhas, comer o farnel à sombra do rio, apanhar batatas e flores amarelas em Porto Lobos. A adega, a fossa, o balancé e os pombos, o forno, pão quente com azeite e açúcar, bolachas Maria com manteiga. As matanças do porco, os alguidares de barro, amparar o sangue, toucinho e torresmos, febras, arroz de serrabulho, encher chouriços, a dedeira e a tripa, o cheiro do chouriço a secar. O vinho, os garrafões de vinho, as garrafas de vinho escondidas debaixo do pial, dentro do forno, na palha, em todo o lado. A telefonia, o penico, o jazz, já começa o jazz. Os Quinas e o Senhor do Grão de Areia. A Lassie. A cruz que ele fez com canas, as touradas e aquela noite de Carnaval em que saímos os três, os quatro, mascarados para assustar os poucos vizinhos, caraças de medo e de alegria, patetas alegres num deserto de gente. Os pesos na balança e os calendários na parede, a arca sempre cheia, os coelhos. O Pitrolin e as Tuchas, o homem da fruta, o Zé Maria, a Fernanda Gorda, a Fernanda Filha. Então, amor. Então, menina.

Acertar nas carochas no muro com a pressão de ar. Ir às lapas. O frango assado no terraço, os ouriços no tempo deles. O Danny, o Danny a correr pr’a varanda, a perseguir calcanhares, ao meu colo no talho, a ladrar quando regresso da igreja. A festa no Cruzeiro ou no Largo, com a procissão, a quermesse e o mata-galinhas. O Ford Escort, o Renault Laguna, a carrinha, a Canter, o Saminho, a Scania. Puxar mangueiras, pulverizar, o cheiro do veneno, fazer leiras, plantar a sacho, plantar à maquina, plantar com o pau, acertar as falhas, “troca”, amolar a faca, a hora da bucha, fazer couvettes, arrumar couvettes, salada russa, a RCL na hora do regresso. Tirar apontamentos, os homens e as mulheres. A charca, o poço, o furo, beber a água do furo e ir roubar figos e pêras ao vizinho. O Nadrupe e a Ciranda. O Super Mário, o GI Joe, os códigos do GI Joe em papel de fax. A passadeira e os sacos de repolho, quando ainda eram sacos, quando nunca foram repolho. A avó Emília à janela e no final da missa. Varrer a garagem e o escritório. As notas presas por elásticos. Os Domingos. Que delícia, mama mia. A hora sempre certa para almoçar e jantar. Comer! O bar da sala, quando a sala era de outra cor. O poster da Buffy. A Buffy, a Felicity, a Diciopédia, o Babar, os Três Moscãoteiros, o Garra Branca, o Sandokan, os Riscos, o Curto-Circuito. Os Jogos sem Fronteiras. Apagar-lhe a televisão do quarto quando ele já adormeceu, ou quando abandona a cabeça para cima do meu ombro, no carro. A Joana, o Tiago. O Suzinando, a sra. Virgínia e a sra. Teresa, a avó da Inês e que, vou tarde, já esqueci o nome. A professora La Sallete, a professora Noémia, a professora São, a professora Lídia Reis, como no poema, o professor Adolfo, a professora Teresa. Jogar ao berlinde e aos polícias e ladrões. Tridente de amora silvestre. O 9o A. O cheiro de pão quente naquela esquina, a caminho da camioneta. A minha mãe a pintar-me o cabelo e a pentear-me. O meu pai a passear-me de mota pelos caminhos.

Os longos abraços dele, sempre inesperados. Aquele dia em que, com tantos por perto, chamou por mim. Quando ela nasceu e ele se disse sortudo. Quando ela sorriu, pela primeira vez, por minha causa. Tudo o que ainda se há de fazer.

Tu. Quando eu caminhava para o trabalho numa manhã de sol em Entrecampos e disseste que me amavas. Quando eras Bambi e as palavras nos serviam para tudo, até para o amor. O dia primeiro, quando fizemos braço de ferro e depois desabamos para a cama, em Oslo. A tua t-shirt, que levei sem querer, o avião que quase perdi, querendo. Todos os hotéis, todos os pequenos-almoços. Ver-te dormir. Quando me tapaste os ombros e, sentada atrás de mim, colocaste as pernas à minha volta e abraçaste-me, naquela praia, enquanto víamos The Gift. Quando cantaste numa praia onde há bancos de jardim dentro do mar. Quando deitaste as tuas pernas sobre as minhas e me contaste o teu dia, em Itália, numa rotina que tinha tanto de perfeito quanto inesperado. Como fomos um casal numa casa, em Oxford, sem que houvesse concertos. Quando procuraste a minha mão, no comboio para Milão ou quando mais tarde, distraída no afecto, te queixaste com um “estava a ver que não!”. O pãozinho e o franguinho do Ganbei, bolinhos e como sempre me arranjaste que levar para a viagem. Aquela tarde de calor tropical, a chuva, a janela aberta, a vontade ou as polaróides na tenda no Zmar. Toucinho do céu, minha happybird. Quando estudamos, quando te exaltas nas ideias e argumentos e as noites são pequenas para a conversa, quando a vontade de ficar era maior. Aquele fim de tarde, numa qualquer praia do Algarve em que, deitadas, agarraste-me a mão e ali geraste o fogo. Quando em Sesimbra me falaste da Blimunda. Quando choraste no meu peito pela primeira vez e fui tão incapaz. Sempre que voltaste para mim ao final da noite, por vezes já inícios de dia, depois que o exercício de socializar nos esgotava e quando o desejo se solta como uma tormenta. Quando sorriste debaixo do meu beijo, muito tempo depois, como se tudo fosse novo. Quando tudo foi novo e não tínhamos medo. Todos os dias, todas as noites. A tua voz no meu ouvido e os teus olhos límpidos, o toque, a boca, o teu riso alto e o teu sorriso de covinhas. O teu jeito prático, bruto, e tão certo de ser. O teu amor, o meu amor.

Vida, que a felicidade nunca se esqueça.

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