Nem sempre me reconheço. Aquela sou eu mas não sou eu, é outrém. Outro o tempo, outro o lugar, outros os sentires que abrigava. Talvez tenha sido verdade aquilo que ouviu o Dr. Pereira, a alma não é única e indivisível, mas habita uma confederação. Imagine-se, uma confederação de almas com egos que se vão alternando no seu governo. Talvez seja verdade, porque não é o reflexo do espelho, ou não apenas o reflexo no espelho, embora até esse me devolva a figura de um palhaço triste, uma vezes mais palhaça, outras mais triste. Aconteceu que tive de regressar aqui e assomou-me uma certa vaidade nas palavras, um sentimento cheio de narcisismo e, em igual medida, de desespero. Leio-me e encontro o pavor daqueles que vivem de glórias passadas, sabendo a dificuldade acrescida dos dias para me igualar ou, pelos menos, provar-me justa derrota, esforçada e orgulhosa. Saberei, algum dia, voltar a escrever assim, sem que me envergonhe?
Durante muito tempo, acreditei que a dor era condição essencial à palavra, tão mais genuína quanto mais fecunda a ferida. Não a procurava mas, se aparecesse, haveria de dar-me jeito. Assim segui, coleccionando dores como quem encontra moedas de cêntimo no passeio, dores desgastadas, dores sujas, dores negligenciadas por outros, que as vêem como eu, mas que não se dão ao trabalho de se baixarem por tão pouco, como eu. Guardo dores em caixinhas, como na canção, que me servem de remendos. Uso-as para enchumaços de histórias.
Só mais tarde percebi que a dor é um engodo e, a catarse, um luto de arrancar a ferros que não merece sacrifícios de espécie alguma. Há dores que não devemos trazer à luz. Se a escrita exigir de ti dor, não a queiras.
É no reler que confirmo o que o corpo já sabia antes de mim. Escrevo sempre melhor depois de estar contigo. O resto são mediocridades, milho de deitar aos pardais. O que mais me orgulha, veio sempre de ti, por ti, e isso é tão óbvio que quase me ofende. Se pudesse, livrava-te do fardo de te amar, mas a palavra escrita torna-se prolongamento da palavra dita, aquela que me sussurras ao ouvido, eu extensão do teu querer vertido em entoações variadas, interjeições de ser e estar, advérbios de toda, aqui e agora, o verbo mais-que-perfeito. Para mim sempre foste o amor à palavra. O amor. A palavra.
Quando queria ficar para mais um beijo, enxotavas-me com um ‘escreve, vai escrever’, lembras-te? Estávamos ainda no princípio do mundo, as palavras davam-nos uma tesão do caraças e era tudo tão bonito, meu amor. Tão ingénua e pura e ternamente bonito, meu amor. Porque é lindo demais quando nos tornamos um só, como disse o sr. Vitor no seu super-carro enquanto nos levava de volta para o hotel, ele que, sendo Português, fala em Espanhol para todos os turistas independentemente da nacionalidade e não sei como aguentámos ali o riso, amor, a sério que não sei. E sei que, vezes houve, em que escrevi como a quem é prometida uma indulgência, a mesma devoção e o mesmo alívio. Escrever e poder, enfim, aceder ao Paraíso. Fosse hoje ainda dia e as portas se abrissem para mim.
A questão perdura, porém: saberei eu, algum dia, voltar a escrever sem ti?
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