Memórias de Cuba: antes que anoiteça.

É um País suspenso na história do tempo. Mal se aterra, sente-se um calor denso, muito próximo da pele, rente ao chão. Havana é uma cidade em decadência, um príncipe que desfila em roupas de pobre. Não Havana, aliás, mas La Habana. Os gatos esquálidos, entulho e aterro, ruínas, muitas ruínas, em estado acabado ou para lá a caminhar. As ruas enormes e por isso o endereço sempre entre uma rua e outra. Não só o pragmatismo, mas também o brilhantismo dessa geolocalização, pois também nós não somos estanques, não nos podemos olhar como um ponto no tempo, somos sempre entre uma coisa e outra. Os cubanos, os puros e robustos, de dança sempre pronta. Tabaco, a vitamina R, de rum, aguardente. A América ali tão perto, para quem venha de pés molhados ou enxutos. A procura desenfreada por euros, a qualquer preço, melhor do que o MLC. O Malecón sempre disponível, o maior sofá do mundo. O wifi a conta-gotas, vigiado, restrito, possível, mas desligado. O que interessam as notícias do mundo a quem vive noutro mundo? O sumo de guava e de manga e de ananás. Os mojitos, El Presidente, Cuba Libre, e, sobretudo, a canchanchara. O capitólio, réplica perfeita do outro, oh perfeita ironia. Por La Habana, lo mas grande. O museu automóvel a céu aberto. A Havana velha e a nova, central, aquela mais fora de mão e onde o turista não chega, mais pobre e talvez por isso até mais autêntica, com as suas pessoas sentadas na beira da porta, de onde se antevê o sofá, o frigorífico, a mesa, a televisão, os seus mitos e oferendas crioulas. São vivendas senhoriais, coloniais e coloridas, de janelas e portas altas. Filas por todo o lado, desde cedo, mesmo que as prateleiras das bodegas e farmácias continuem vazias. Um cubano morreria de assombro se um dia se encontrasse em frente a um hipermercado. De repente, paramos a walking tour porque alguém está a vender ovos, e é tão difícil encontrar ovos. A crueldade do tão longo embargo americano, mesmo que tenha costas largas, e que persiste por embirração mais do que outra coisa. Só o povo verga e cede. O Telégrafo, hasteando uma orgulhosa bandeira gay no parque central de Havana. E imaginar Hemingway não muito longe dali, na Bodega do Meio, no Floridita, no Ambos Mundos. “O nosso herói nacional”, José Martí, assim, não o Fidel ou o Che, e perceber que percebo pouco. Paladares, à conta da novela brasileira. E aquele, o mais bonito, La Guarida, e as toalhas de mesa a secarem ao sol numa das salas do palacete, qual filme, o filme. E depois Viñales, em contraste. Um parque de campismo gigante onde todos se conhecem. Mauro, Merengue, Caramelo, Lucenzo. A natureza na sua plenitude, descansada e discreta, não se passa nada, só os cavalos e bois e turistas. Cayo Jutias, virgem imaculada. Lagosta, camarão, ou peixe. E os colectivos, pessoas debaixo de pontes e junto a cruzamentos, exibindo o dinheiro na mão e, mesmo assim, não há boleia para estes, não pagam em euros. Por la revolución, todo. Os campesinos unidos produciendo para el pueblo. A propaganda por todo o lado, a revolução por todo o lado. E também a surpresa, quase 50% de mulheres no parlamento, a Mariela Castro. A luta contra o banditismo e os muitos comités de defesa da revolução, Cederistas, o elogio da vigilância e da denúncia, tão longe da nossa Revolução. E depois, sobretudo, acima de todas, a Trinidad de galerias e gaiolas, de arte e pássaros, respectivamente, ou seria o contrário. Nas condições certas, viveria ali e não sei dizer mais, pois custa sempre falar de quem gostamos. E, finalmente, Cayo Coco e Guillermo, quando se entra dentro dos postais e a água é mesmo daquele azul turquesa, e tiro e coloco os óculos para confirmar que estou a ver bem. A Playa Pilar será porventura a praia mais bonita onde um dia atraquei e reconheço ali a nú o meu privilégio. De resto, há o alívio do privilégio em toda a visita, o saber que existe um lugar a voltar, mesmo que agora todos os assuntos se quedem e as urgências se tornem passageiras. Cuba é uma fantasia, uma catástrofe bela a acontecer e de que não conseguimos desviar o olhar. Outro tempo, outro mundo.

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