174 - Escrever ao contrário


"As meninas da linha 174 – um elogio

Dentro do ônibus havia mais sensatez e
competência para lidar com situações
extremas do que fora


Nem tudo está perdido. Enquanto houver gente capaz de escrever ao contrário, num vidro, para que a mensagem possa ser lida sem esforço por quem está do outro lado, e escrever com correção e clareza, reproduzindo com precisão o desenho das letras, apesar de circunstâncias mais do que adversas – não, nada estará perdido. Experimente o leitor desenhar as letras ao contrário. Talvez já tenha experimentado, num momento de tédio, enquanto se dava ao desafogo de deitar rabiscos erráticos numa folha de papel, e então conhece as dificuldades que, mesmo quando se trata de letras de fôrma, e maiúsculas, as mais fáceis de reproduzir, o exercício oferece. Algumas letras são iguais, tanto do lado direito quanto do avesso: o "A", o "T", ou o "V", além do "O" e do "I", as de formatos mais elementares. Destas não há do que reclamar. A maioria, porém, exige a habilidade de um contorcionista da caligrafia.

É preciso lembrar de fazer para a esquerda o que se fez a vida inteira para a direita – os três dentes do "E", a base do "L", a perna e a meia bola do "R". De súbito, é preciso conceber uma representação invertida do mundo, como se, exagerando um pouco, a noite virasse dia, o seco molhado e os machos fêmeas. É preciso ter em mente que o rabinho do "Q" agora vai para o outro lado. Porventura a maior dificuldade será não se perder nas curvas do "S". Agora imagine-se praticar o exercício de escrever ao contrário sob as ordens de um alucinado que tem um revólver na mão, e os leitores já sabem de que e de quem se está falando – do seqüestro do ônibus, no Rio de Janeiro, e de Janaína Lopes Neves, uma das reféns, obrigada a escrever com batom, nas janelas do veículo, as mensagens ditadas pelo seqüestrador. Uma das mensagens era: "Ele tem pacto com o diabo. Tem um punhal e o diabo desenhados no braço. Ele vai matar". A outra: "Ele vai matar geral às 6 hs. Arrancaram a cabeça de sua mãe". Não foi esquecida a crase no "às 6 horas".

Nada pode distrair da tragédia que acometeu o ônibus da linha 174, Gávea-Central do Brasil, na parada do Jardim Botânico. Nada pode aliviar o choque da morte de Geisa Firmo Gonçalves, sacrificada no bojo de uma das mais grotescas manifestações de incompetência policial já encenadas sobre a orbe terrestre. Mas olhemos em volta. O drama teve outros personagens. Janaína, de 23 anos, natural de Campo Grande e estudante de administração na PUC do Rio, deu, ao escrever as mensagens, uma demonstração de autocontrole de humilhar os profissionais da polícia, ainda que, por dentro, não parasse de rezar e achasse que ia morrer. Nem tudo está perdido.

O seqüestro do ônibus 174 foi o seqüestro das meninas. A elas é que o seqüestrador agarrava, o revólver apontando-lhes para a nuca ou a têmpora, quando não enfiado na boca. Se não era Janaína era Geisa, se não era Geisa era Luanna, num sinistro baile em que não poderia haver maior desgraça do que ser tirada para dançar. Mas eram meninas de estofo, e quanto, aquelas. Elas se provariam capazes de enfrentar a emergência indizível que viviam. Geisa, cearense de 20 anos, professora de artes das crianças da Rocinha, deu-se, antes de ser arrastada de encontro a um perigo ainda maior do que um alucinado de revólver, que é a incompetência da polícia, à iniciativa de pedir ao seqüestrador, e obter dele, a libertação da amiga com quem viajava, mais velha e muito nervosa. Janaína foi vítima de um fuzilamento simulado: a certa altura o seqüestrador forçou-a a se deitar no chão e disparou um tiro que, até o último milionésimo de segundo, ela pensou que fosse mesmo acertá-la. Nem por isso aniquilou-se emocionalmente. Luanna Guimarães Belmont, estudante de comunicações da PUC, e a mais novinha do grupo – 19 anos –, ajudou a pôr um pouco de ordem no caos, ao dispor-se a recolher para o bandido o dinheiro, colares e relógios dos passageiros e ao tentar o tempo todo acalmar as pessoas. As três vieram de diferentes partes, com diferentes histórias, para, num momento de suprema provação, terem como ponto comum um comportamento lúcido e altivo. A Luanna, numa declaração ao Jornal do Brasil, coube a frase definitiva sobre um seqüestrador destrambelhado, menino de rua desde os 7 anos, sobrevivente da chacina em que oito companheiros foram mortos pela polícia em frente à Igreja da Candelária, em julho de 1993: "Não desejei a morte dele, só queria que ele nunca tivesse existido".

Há muitas razões para desânimo, numa hora dessas. O episódio em si é a maior. Segue-se a parlapatice das promessas de reformas e providências que, sabe-se, nunca virão, e de anúncios de planos de segurança que, adivinha-se, nunca vão fundo, e, se forem, não se terá coragem de implementar. Fiquemos com as meninas – com Janaína e Luanna, pelo menos, uma vez que com Geisa não é mais possível. Elas convidam a um olhar sobre o episódio na direção inversa das mensagens nos vidros. Dentro do ônibus havia mais sensatez e competência para lidar com situações extremas, sem falar de mais sensibilidade e humanidade, do que do lado de fora."


Roberto Pompeu de Toledo,

na Veja de 21/6/2000

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