Havia ali um senso arcaico da paixão*

Leva dentro dela algo que se parece muito com a eternidade, no seu brilho incandescente de força e amor capaz de ferir. É tão natural para ela, que não o vê. Nasceu assim, pobre feliz. Inala a vida como se lhe fosse estranha e por isso com esse abismo de desejo exasperado que os poetas tentam desesperadamente meter em cada verso forçado. Perdeu a fé nas palavras e por isso morde com certeza os gestos soltos que lhe sacrificam em oferenda, flores de chá quente a consumir no silêncio vertiginoso de quaisquer noites orientais. Dance me to the end of love, canta ele em suspiros roucos e demorados entre violinos ardentes , os meus olhos tão dentro dos teus, soterrados nos teus, os meus olhos tão teus. E, quando de mãos abertas, brotam-lhe ternas promessas em que não acredita porque a verdade surge no final e ela já sabe. Conta-me o teu segredo, despe-te para mim, peço-lhe. Tem muitas histórias consigo, quase todas inacabadas, quase todas de amores perdidos e lágrimas achadas. Também a fé nas palavras, essa também não achou ainda, e por isso espraia-se num branco sem medida, também ela à procura. E eu à procura dela. Busco o seu corpo fino à procura da salvação, aquilo que poderá ser a eternidade, ou algo muito parecido com isso, aquilo que ela tem, não sei dizer-te. Só sei dizer-te.

*Herberto Helder

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