Criam-se as coisas para fazer memória, livros, fotografias, pinturas, esculturas, filmes, músicas. A arte faz do que fica memória porque até as memórias podem fugir-te, o espelho, a realidade, a memória. A ceifeira é inconsciente mas canta o canto da ave com mais razões para cantar do que a vida, reparou ele. A ceifeira canta e é belo o seu canto.
Para fazer memória, escrevi o nosso amor naquele livro que te dei, o único e verdadeiro livro que alguma vez verás meu, povoei de palavras cada dia dos muitos que ainda nos esperam em distância, olho a matrioska a baloiçar-se na minha pulseira e descanso na almofada que fizeste para mim, happybirds verdes, roxos, azuis a fazerem ninho com os fios do meu cabelo. Queremos fazer memória. Criamo-la com maior ou menor intenção, às vezes ela faz-se sozinha enquanto olhamos uma estrela cadente, outras prende-se num pormenor parvo daqueles que ninguém reparou antes e faz dele porto e destino. Estando dentro de nós, num sítio que dizem ser o cérebro mas do qual ainda desconfio que seja mesmo aí, é muito curiosa a memória, faz o que lhe apetece.
A minha, vê tu isto, embirrou contigo, apanhou-te no outro dia enquanto sorrias e, como os cães, não te larga. Estou eu a trabalhar arduamente, sempre arduamente, posso até estar a dormir, repara, e lembra-se-me de ti sem motivo, fica ali só a detalhar os pormenores do teu sorriso como se não tivesse mais nada para fazer, boa vida. E não é só o sorriso, chega a ser mais grave, pode ser a tua voz a cantar, o teu cheiro ou, imagine-se, a suavidade da tua pele. Não sei o que lhe aconteceu mas estás-me sempre na memória, temos de fazer algo a respeito.
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