Chega um dia em que somos todos desconhecidos de vista.

“Estou em Oxford, Reino Unido” e isto vais ser longo.

Gosto de vir ao café e ficar sentada nos cadeirões junto à janela que dão vista para a praça. Ou para o largo, não sei, sempre fui má com o mais quotidiano e óbvio da vida, praças e largos, camisas e camisolas, botas e botins, afectos e contas de dividir. É uma praça ladeada de árvores altas e edifícios laranja acastanhados, casas com comércio em baixo, ou lojas com casas em cima, depende de que perspectiva se olhe. Às Quintas e aos Sábados fazem aqui o mercado, com pão e legumes biológicos e quinquilharias e coisas usadas a bom preço. Tem um ou dois restaurantes, uma casa de apostas, as barracas dos kebabs, a antiga estação dos bombeiros, uma fileira de táxis sempre à espera, e um ou dois cafés, entre os quais este onde me encontro, numa imitação cara de cafés italianos com duas ou três jovens empregadas, geralmente italianas ou espanholas, acabadas de chegar e com um Inglês tão fraco como o meu mas igualmente treinado para entender à primeira o essencial do negócio: “small moka, with cream, to drink in”. Aqui é diferente de Londres, as pessoas sentam-se, de facto, no café. Têm mais tempo ou menos pressa.

Trago sempre um livro e procuro sempre o mesmo sítio, junto à janela da entrada, inteira e a ocupar toda a parede. Agora ando a ler “O meu irmão” oferecido, claro está, pelo meu irmão e que não podia ser mais perfeito mesmo que lhe tenha encontrado uma “cocha” em vez de “coxa”, e que já não sei distinguir se é gralha ou novidade do acordo ortográfico porque na realidade nunca me interessei por saber o que mudou, mesmo que isso me tenha causado um pequeno embaraço quando errei o “pé-de-atleta”. Um bom livro, um bom assento e uma vista, e sou novamente eu. Basta um dia assim para quase aspirar a fazer da escrita vida e tornar-me passageira errante pelos cafés do mundo. E a música, claro está. Porque neste tipo de cafés há sempre uma música de fundo que é a adequada e que nos leva a memória até a outro tempo mas nunca longe demais, Mumford and sons e afins.

Hoje não está um dia bonito mas está um dia melhor e os mais atentos conseguem decifrar distintamente pequenas nesgas de azul entre as nuvens. Vir ao café deixa-me quase sempre mais atenta. Sem querer, dou por mim atenta na minha distracção. Acontece-me muitas vezes, coisas do signo ou da lua. Pouso o livro e fico só a olhar as pessoas. Faz muito tempo, contei-te que não havia nada de interessante a meu respeito e tu retorquiste que eu estaria de certeza enganada, que achavas que eu era daquelas pessoas que ficava horas a observar os outros, a imaginar-lhes histórias, a olhá-los por dentro, e que isso era interessante. Bom, talvez não exactamente assim mas algo muito perto disso. Nesse tempo havia ainda aquela distância que nos aproximava a cada dia, pedindo sempre mais, pedindo tudo. Talvez agora já possamos concluir que isto nada tem de interessante e que passar a tarde no café a olhar os outros é só um exercício de solidão em que me vou aprimorando à falta de melhor para fazer num Domingo à tarde.

Mas sobre a praça, ainda. A estação dos autocarros é já aqui ao lado e por isso vêem-se a toda a hora pessoas a passar com malas. Nisso, ainda se parece com Londres, mas talvez apenas nisso. Não é porém uma praça central nem uma praça bonita. Há pombos e há famílias com crianças, algumas ainda bebés, mas não chega para fazer desta uma praça central ou praça bonita. Ninguém vem para aqui tirar fotografias excepto os casais apaixonados mas, esses, já se sabe que podem tirar fotografias em qualquer lugar, não precisam de mais nada senão daquela paixão.

Quando chego à página duzentos e quarenta e oito, quando o Miguel deficiente e os pais já velhos ficam isolados no Tojal, já o sol se pôs, 16:08. Por dentro da janela do café, o céu parece agora todo da mesma cor. Um azul uniforme. Morno. Magnetizante. Então oiço de novo a minha voz dentro da cabeça, sempre mais calma e mais bonita do que a minha voz fora dela, “estou em Oxford, Reino Unido”. Digo-o para me lembrar das infinitas possibilidades, do mundo a girar e do inesperado sempre disposto a acontecer. Quantas vezes ainda me surpreendeu o amor e a vida, quantas vezes a relatividade de tudo e o fascínio de existirmos, eu e tu, no mesmo instante de aqui e agora. Por isso, continuamos para ver o que vem depois. Esperamos. Pagamos para ver.