Ainda a narrativa.

À primeira vista é um falhado que veio ali para falar-nos do seu fracasso. Não era uma dessas pessoas que falhou e vem agora falar-nos de persistência, aprendizagem, nunca desistir dos sonhos, blablabla pardais ao ninho. Ainda não foi bem-sucedido para se poder dar ao luxo, como outros que por ali aparecem de vez em quando para exercícios prolongados de narcisismo, de vir falar-nos de como batalhou, batalhou e conseguiu. A verdade é que ainda está na merda ou como o pôs, eufemismo simpático que tanto podia servir ao propósito próprio de desculpar a franqueza como àquele de não assustar uma futura classe trabalhadora que ainda não faz ideia da vida, está “sob um elevado nível de stress profissional e pessoal”.

Todavia, não se queixa. A qualquer momento pode desabar tudo, mas ele prossegue. Não desliga o telemóvel por medo de ir parar à prisão se nao prestar atenção suficiente. Tem de despedir amigos todos os dias e conseguir dormir à noite. Tem os olhos do mundo em cima, nenhuma margem para enganos, atacado todos os dias por todos os lados, quem manda, quem obedece, quem regula, quem compra e quem vende. Nao há desculpas. É ele contra todos, David perante Golias. Não o diz com pena ou para lhe enaltecermos os feitos. Quando baterem as 16:30, não vai querer saber de nós para nada. Abre as mãos e diz “é isto”.

Tem um certo orgulho no seu falhanço, uma espécie estranha de liberdade que encontrou no sítio mais inóspito e por isso mais inesperado e por isso a mais saboreada. A falta de expectativas é o seu escudo e o seu brasão, aquilo que lhe permite decidir sem medo. Ele vai com tudo. Quando outros falam de lucros de milhões, o que ele quer é apenas respirar, manter-se à tona da agua é missão bastante. Em sete anos passou de mais de quinhentos milhões negativos para cinquenta milhões negativos ao dia de hoje. Parece muito porque é muito.

O único momento em que se irrita é quando lhe perguntam se entra em politiquices, jogos maquiavélicos de poder e disputa. Diz-nos que não sabe em que mundo vivemos, mas, no dele, não há espaço para jogos. Não há cá pokers p'ra ninguém. De resto, há nele uma serenidade muito grande, coisa que se diz vir da adversidade. Nunca baixa os olhos, não tem vergonha nenhuma para exibir, está de bem com a sua nudez e, sendo feio, isto quase o torna mais bonito, a pessoa mais bonita daquela sala de aula.

À falta de sucesso, inventou para si outra medida. Não se mede pelos outros. Trocou a narrativa. Não poderia por isso ser um falhado.

Sem comentários: