Abre-me a porta como quem aceita desvendar um segredo. Nota-se que não leva ali muita gente. Cedo se percebe porquê. Confia em mim. Com as mãos nas ancas, ri baixinho e espera apreensiva a minha reacção, se a tomarei por louca ou não. Ri como se lhe fosse impossível ser de outra maneira. É-lhe como um vício. Incontrolável e, por isso, respeitável, merecedor de tolerância senão mesmo de compreensão. Encaro-a estupefacta com tamanho espectáculo. Cala a boca, poderia agora dizer na sua habitual expressão de agitação e deslumbramento. São malas de viagem cheias, sacos de ir ao supermercado a abarrotar, pilhas de roupa. Chegam ao tecto e enchem a cama, a cómoda, as cadeiras, o chão. O quarto está totalmente atulhado. É uma acumuladora.
Mostra-me um par de peças, tem ali tecido ainda bom, elegante, da moda, do caro. Não precisa de caridade, mas não se envergonha de aceitá-la. Bastou uma primeira vez. Há um papel social que cumpre com zelo numa espécie de relação simbiótica que seria digna de apelidada de reciclagem ou, no seu extremo, de economia circular. A minha avó estimula a economia circular ao aceitar de bom-grado aquilo de que outros querem desfazer-se.
São cortinados, toalhas, colchas, calças, malhas, cobertores, tecido avulso. Ela, defende-se prontamente de um crime de que não a acuso: mete-lhe pena deitar aquilo ao lixo. Porque ainda se aproveita, porque é só aquele canto que tem lixívia, porque esta foi a primeira peça que a tua mãe fez, porque isto era do primo do tio do teu avô, porque aqueloutro é quase uma relíquia, porque está como novo e a estrear, porque deste ainda se faz alguma coisa. E faz. São mantas, quadrados para almofadas, vestidos para bonecas. Ela faz, ela pensa, ela inventa. Nos seus mais de oitenta, diz-me que acha que as velhas só vão para os centros de dia porque não têm habilidade para mais nada. Soubessem elas costurar, fazer renda, remendar roupas e ter ideias como a minha avó e não precisavam do vazio de uma companhia. Diz-me que não tem paciência para tardes inteiras de conversa. Dou-lhe razão, antevendo a inevitabilidade que me calhará por sorte, que não sei coser um botão.
Mais tarde, pensei que, por mais despachada, poderá vir a faltar-lhe tempo para transformar todos os tecidos do quarto repleto. As filhas rir-se-ão primeiro e afligir-se-ão depois sobre como se livrarem daquela balbúrdia, desconhecedoras da ordem perfeita de arrumação que só cabe na cabeça da minha avó. E, na sua pele, vi-me. Um dia, tudo se perderá. Estas palavras, as roupas, os livros. Um dia também os meus livros serão estorvo. Mete pena, minha vuelita.
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