Não é nas palavras que o se perde regressa alguma vez.

Terás sido quem primeiro me alertou para a fluidez dos sentimentos. Como se fazem, se quebram, se montam, prolongam e transformam. Os sentimentos iam na plenitude da corrente a desaguar no que fosse e, se chegavam a tocar as margens, era apenas para conhecerem o tamanho do que poderiam vir a ser. Não eram contidos por essas margens. Pelo contrário, definiam-nas com a sua força de corrente. Também por isso era difícil, por essa altura, nomeá-los, dar conta do seu peso e medida, precisar onde começavam e terminavam. Onde começa e termina o mar? Qual a hora longínqua que te fez a limpidez dos olhos?

Habituei-me a essa incerteza ao ponto de amá-la. Talvez venha daí o problema de procurar desenredar tempos a fim de os encaixar melhor em definições que, teimas, nos protegem. É um exercício de estilo a que me furto. Tudo está emaranhado. Belo e perfeitamente emaranhado. É por isso que, quando penso em nós, penso antes em épocas, espécie de artifícios de divisão para calar a passagem das estações. Cada época tem o seu lugar, cheiro, hábitos e “um rito de palavras e uma forma de as pronunciar”, como todo o bom passado as tem. Pára. E, se isto é a ser sobre nós, tem igualmente um gosto. Naturalmente. Há épocas com sabor a aveia e banana, épocas de crepes com nutella e outras com sabor a batido de morango. Não sei quantas vezes mudou o meu nome através dessas épocas. O teu foi sempre o mesmo. Amor, minha gata, minha happybird.

Sempre que estava para começar uma nova época – algumas vêm anunciadas – pensei que se acabava ali. Era desta. É desta que te perco. Nunca me tive segura, ainda que possas pensar o contrário. Mesmo agora. A todas soubemos contrariar, com mais ou menos subornos e esforço. No meu desespero calado, tu acabas por regressar sempre e eu sou sempre surpreendida e feliz no teu regresso, mesmo quando demoras e me exasperas na tua brutalidade. Mas tudo é tão frágil. Tudo tão arriscado.

Talvez comece agora outra época – algumas só se percebem depois. Há em tudo uma seriedade digna. Tocamo-nos cada vez menos. Quando chegas, já tens a tua decisão tomada. O toque é uma fronteira e há uma tensão que se antecipa ao momento de solucionar o sono. O que pertence e o que não pertence aqui. Também os gestos se exigem claros, sem motivos dúbios. Os sentimentos apresentam-se em sentido e é-lhes exigida identificação, proveniência e paradeiro. Quando começaram, qual a data exacta em que passaram de um estado a outro, onde se encontravam quando sucedeu aquele episódio, que justificação lhes ocorre para aquele comportamento transgressivo. São sentimentos de régua e esquadro como se fossem a dividir África entre os colonizadores, cabem em caixinhas. O que sinto procura asilo. Sou feita de sentimentos refugiados.

Não é um apelo, cruzes credo. Talvez seja o certo e a vida toda seja uma desabituação, não sei. Fecunda é a ferida que nos abre, escreveu, mas não se mata a sede com pão e eu tenho tanta saudade de te ouvir rir. Já seguiste caminho e eu quedo-me em lamentos inúteis que não sairão daqui. Um dia cansas-te eu eu arrependo-me do quanto insisti. É tudo tão arriscado. Pergunto porquê e não sei. Pergunto para quê e também não sei. Já me demorei tanto nesse pensamento e não temos, nem eu nem tu, tempo para filosofias. Teres lido até aqui já será, convenhamos, uma vitória. Mas, se estou só e tu estás só. É um argumento traiçoeiro de que me muna dos precedentes, reconheço, e há pureza no nada que pode ser melhor do que alguma coisa. Contudo, fomos felizes. A tua mão na minha mão e um incêndio no peito que não vinha do facto de estarmos em pleno Agosto. Se não tivesse conhecido o fogo. Depois logo se via, sem crime nem castigo, sem passado e sem futuro, sem outras linhas invisíveis. Talvez.

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