Desculpa-nos

"Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada", Edmund Burke.

Confesso que não me lembrava. Pior, tenho a certeza de que muitos outros não se lembraram. Fez ontem um ano que se cometeu uma barbárie em Portugal - a morte de Gisberta.
A justiça de um País revela-se em casos limite. Acho que a nossa, uma vez mais, falhou. Banalizou-se o caso. Não se lhe deu a devida importância. Houve uma autêntica farsa judicial, política, social. Acentuou-se a palavra "delinquência infantil" mas pouco se ouviu falar de homofobia. Somente da transexualidade de Gisberta, como se isso a definisse, como se isso sequer importasse! (Tivesse sido um cidadão português com os impostos em dia, o desfecho do caso teria sido bem diferente, mas, temos de comprender, travesti e brasileira, o que é que nós temos que ver com isso?). Morreu uma pessoa. Lamentavelmente, quase parecia que falavam de uma pequena brincadeira que acabou mal, uma coisa desculpável...Sociedade hipócrita! Shame on us.
Deixo-vos com o texto de Fernanda Câncio postado no seu blog e publicado no DN de 6a e...quase me apetece chorar, de indignação, de pena, da nossa enorme pequenez e desumanidade...



"Querida gi,
Pronto. Passou um ano. Já não me lembro bem das primeiras notícias. Confusas. Havia um homem num poço num prédio abandonado. Um travesti. Um sem abrigo. Um toxicodependente. Um brasileiro. Eras um homem, primeiro, com nome de homem: Gisberto Salce Júnior, 46 anos, sinais de espancamento, um bando de miúdos de instituições do Porto como suspeitos, tinha sido um deles a contar a uma professora uma parte da história, o onde e quem e o quê que levou a polícia e os bombeiros ao corpo seminu a boiar no fosso de dez metros.

Depois eras prostituta e ex "rainha da noite transgender", tinhas HIV e hepatite C, foras afinal uma mulher bonita, um sorriso rasgado nos vestidos de star e na cabeleira longa, loira, ruiva, morena. Vieram as fotografias, devagar, só nas revistas e nos jornais, poucas, muito poucas. Nunca na TV. Lia-se um jornal e eras homem, lia-se o mesmo jornal e eras mulher. Gisberto, Gisberta. Ouvia-se um responsável de uma das instituições onde viviam os rapazes que te espancaram e eras "não propriamente um exemplo". Talvez mesmo um agressor, talvez mesmo um perigo, se não real pelo menos representado, de "pedofilia", contra o qual os miúdos -- sabíamos agora que adolescentes entre os 11 e os 16 -- "tinham decidido fazer justiça pelas próprias mãos".

Veio a autópsia e a descrição das queimaduras, dos indícios de violação anal com pedaços de madeira, do teu estado de sida terminal (tinhas fugido de um centro de tratamento onde a Abraço te tinha internado), do facto de teres morrido afogada e "não em consequência das agressões" que te foram inflingidas.

Trato-te no feminino, Gisberta, porque foi mulher que escolheste ser e foi, parece que terá ficado mais ou menos provado no julgamento à porta fechada dos miúdos, por teres querido ser mulher tendo nascido homem, por seres "um homem com mamas", que foste objecto da curiosidade e depois da violência do bando. E trato-te por querida, Gi, porque me apetece. Desde o início, quando te imaginei só e derrubada, dias e noites de dor e medo e incredulidade à espera que eles parassem com aquilo, à espera que um deles chamasse ajuda, à espera que te vissem - que te vissem - e percebessem que não podias acabar assim, aos pontapés de meninos de rua de um país estrangeiro, tu que tinhas vindo de São Paulo para a Europa para cumprir os teus sonhos, tu que tinhas vivido em Paris e encantado plateias e arrebatado corações, tu que eras tu, única e irrepetível.

Desculpa, Gi. Não ter havido um milagre. Ou pelo menos uma pietá para te descer da cruz e te segurar na cabeça. Alguém a gritar justiça por ti à porta do tribunal, quando eles saíram e espetaram o dedo, de tão arrependidos. Desculpa tanta desculpa."

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