Cause i no longer know where home is.

Para uma aldeia com tão poucos habitantes ao ponto de ser quase brincadeira dizer de cor o nome das ruas, já tivemos talvez a nossa dose de comédia e de tragédia e o nosso número de personagens irreais. Já se ouviram todas as histórias. Fica agora só o tempo a passar manso como quem perdoa as exaltações da juventude. Hoje, o Camilo e a Ascelina são dois velhos sozinhos num lar e não aquele casal de loucos que nos assaltavam a meninice. Ele a roubar gatos para o jantar, ela a chamar os bombeiros com fogo e doenças súbitas que para mais não serviam do que para fazer a vontade aos filhos com aquele espéctaulo de sirenes e luzes. Hoje, mesmo o Suzinando que antes ameaçava matar miúdos e atirava telhas para o meio da estrada sem atender aos carros, não mete medo e deixou de beber. Dos outros, o Duarte, que fugia da escola e chegou a furar a orelha do meu irmão com um lápis HB, é agora um rapazinho de bem, honesto e trabalhador e que me cumprimenta sempre com um sorriso. Sobram os Perús, mas esses, sendo caso mais sério, toda a gente sabe que são doentes, não chega para haver circo.

Hoje, uma série de pessoas que fizeram a minha infância já se foram. A velha YaYa, a menina Silvina com quase 100 anos e sempre menina, o Afonso, o senhor que me perguntava sempre se eu não lhe vendia o meu cão. Os velhos da minha aldeia vão caindo como tordos e tenho pena que não venha ninguém falar deles, os bons sempre primeiro. Era um tempo de festas no largo da igreja, eu a ler e a cantar na missa, ainda haveríamos de ter por mais um ano ou dois o tiro ao alvo e o mata-galinhas ao domingo à tarde. Antes disso, demasiado antes para me lembrar com precisão, os mais velhos juntavam-se lá embaixo no Forte, onde já ninguém vai, para jogar chinquilho nas tardes de sol. O meu pai haveria de ter uma mota e de me levar com ele a ver o mar por entre os caminhos, como eu gostava. 

Na minha aldeia pequena, calámos as tragédias colectivas. Sofríamos todos. O Tiago, a Joana, meus colegas de escola, e já passaram tantos anos que hoje ouviríamos diferentes versões. Mais tarde, o camionista em França e só os gritos da Sr. Hermínia a ecoar em todas as ruas e o choro da minha mãe ficaram como versão viva na minha memória.

Por vezes acometo-me destes saudosismos, para o bem e para o mal, como quando o talho abriu. Haveríamos de ser a aldeia mais avançada da zona e as pessoas das aldeias vizinhas vinham à nossa para se aviarem. Ainda hoje é assim. Dá vontade de rir.

Nós somos a geração que saiu da aldeia. Temos enfermeiros em Lisboa, solicitadores, engenheiros na Suíça, eu também por aqui. Quando regresso, reconheço cada vez menos gente. Os velhos morrem, os novos já não os conheço. O mudo continua mudo e continuam a pagar-lhe cervejas no clube. Ao menos isso.

1 comentário:

cegonhagarajau disse...

Sabes, identifico-me com tudo o que escreveste.
Apenas mudam o nome das personagens.
De facto é um saudosismo por vezes positivo mas outras negativo.
Por vezes penso que é arrogância da minha parte, por outras lembro-me que sofre menos quem menos pensa…
Mas por vezes, a saudade das gentes e dos cheiros…confesso…lágrima no canto do olho…

Abraço